Voltar a todos os posts

As inquietas asas da paz

17 de Outubro de 2014, por Evaldo Balbino

Recentemente, num ritual simbólico pela paz, um dos pombos soltos pelo papa Francisco e por duas crianças acabou atacado instantes depois por uma gaivota e por um corvo. O animalzinho foi estraçalhado em pleno ar, perante os fiéis terrificados que estavam em frente do apartamento papal. O incidente ocorreu durante a tradicional oração do Ângelus, na Praça São Pedro, no Vaticano.

Pipocaram pela mídia comentários fanáticos e reducionistas sobre o episódio. Transformou-se um incidente em maus presságios.

Tudo bem que o papa passou por um constrangimento, numa cena delicada, tão contrária aos sentidos que o ritual buscava apregoar. Mas daí associar uma ocorrência dessas ao dilema da falta de paz no Globo já é demais!

Foi uma fatalidade os pombos serem soltos naquele momento, no mesmo momento em que dois predadores estavam à espreita. A vida é assim. Basta estar no lugar errado, na hora errada, e muita coisa ruim pode deflagrar-se. Eu, particularmente, não gosto de ver cenas de predação. Tanto que eliminei da minha TV aqueles canais que fazem disso um espetáculo. Um amigo meu, da área de ciências biológicas, já me chamou de sentimental por isso e, o que é pior, acusou-me de preconceituoso nessa minha atitude. “A natureza é bela”, ele me disse. “E como tal, tudo nela é belo. Faz parte da vida esse tipo de coisa”.

Obviamente não aceitei a acusação. Refutei-a com unhas e dentes, como um predador ataca sua presa. E minhas unhas e meus dentes foram palavras com as quais me defendi. Sei que a predação faz parte da vida, da tal cadeia alimentar. Sei que a vida é uma cadeia, uma inter-relação em que a morte é necessária à vida. Afinal, não matei as aulas de Ciências e de Biologia que tive na escola. Tanto não as matei, que refutei a acusação impiedosa do meu amigo cientista com argumentos tirados da minha memória escolar.

– Simplesmente – eu lhe disse – não sou obrigado a ver as coisas ásperas da vida sendo transformadas em espetáculo. Suporto a morte na arte. Num quadro pintado, numa música que me faz sofrer, numa descrição poética que me abala. Mas da realidade nua e crua não dou conta. Muito menos dela sendo objeto de contemplação para olhos que brilham com a dor. Pois é isso o que acontece. Tenho medo dessa mania sadomasoquista dos pobres humanos que somos.

Ele me olhou com olhar de superioridade e foi dizendo que os “literatos” são mesmo de outro mundo, aéreos demais da conta.

Eu me silenciei depois disso. Não me senti mais na obrigação de dar explicações. E valeu a pena eliminar os tais canais. Passei a dormir, desde então, com mais tranquilidade. Uma irrequieta calma, pois estou sempre cônscio de que em algum momento e em algum lugar do planeta sempre há mortes e dores cedendo lugar às vidas. Isso é necessário.

Mas voltemos ao episódio do pombo devorado na Praça São Pedro. Sem fazer as malucas e fanáticas conexões que vi serem feitas, tal cena me fez pensar muita coisa. O meu amigo cientista, decerto, não estranharia os meus pensamentos. Afinal, mentes aéreas podem voar mesmo. Mas nesses voos há certa lógica. São os fluxos que como sangue nos alimentam as veias da memória.

A cena cheia de paradoxo – um pombo devorado num ritual pela paz – me fez pensar sim na falta de paz no mundo. Sei que o ataque dos predadores não fazia parte do ritual, mas infelizmente neste se inseriu. Pensei nas guerras, nos genocídios, na ganância desmedida do ser humano, na sua sede insaciável de mandar e poder, e tudo isso me entristeceu.

Também pensei nos pombos que aparecem massacrados cotidianamente nas ruas de Belo Horizonte. Mas esses não têm as vidas estraçalhadas para alimento de outros seres. São atropelados pela pressa das pessoas, por uma violência dos motoristas que não respeitam vidas, principalmente quando são as de simples pombos. E também, é claro, há os que atropelam humanos e não prestam socorro. Mas graças a Deus estes são a menor parte dos violentos irresponsáveis.

Igualmente me lembrei de outra coisa. Num dia do ano de 2006, um cunhado meu agonizava seus últimos dias de vida na Santa Casa de Belo Horizonte. Minha irmã e eu estávamos atrasados para chegar ao hospital. Pegamos um táxi. Quando percorríamos a Av. Alfredo Balena, vi um pombo amassado no chão, mais à frente do veículo, e lamentei por isso. Ver as penas e as vísceras numa única massa, sem vida, só fez aumentar minha tristeza, a angústia de ver o fôlego do meu cunhado esvaindo-se. Ele estava em coma no centro de terapia intensiva. Como resposta ao meu tom de lamento, o taxista deu uma risada fria e foi despachando com desenvoltura: “Menos um pra encher o saco!”.

 

Paguei a corrida sem ânimo e em silêncio. E seguimos nosso caminho. Há palavras que ferem, que desarvoram qualquer paz, principalmente em certos momentos da vida.

Comentários

  • Author

    Que textos tão lindos e tãpo cheios de sensibilidade! Parabéns!


Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário