Cel. Xavier Chaves: o despertar para a “noção de igualdade” em Vila Fátima


Cidades

José Venâncio de Resende0

Sede do Cosnec no bairro Vila Fátima (Foto cedida por Beto).

A comunidade negra da antiga Vila Fátima está mais consciente do seu valor, não tem mais vergonha de morar no bairro e nem da sua cor, diz o líder comunitário Roberto Carlos, mais conhecido por Beto. “O COSNEC (Grupo Consciência Negra de Coronel Xavier Chaves) despertou no nosso povo a noção de igualdade.”

Em termos de educação, as crianças da Vila Fátima estão plenamente integradas nas escolas municipal (crianças são transportadas de ônibus) e estadual. Quanto aos adultos, poucos ainda trabalham na roça, muitos jovens frequentam faculdade e outros já atuam em suas áreas profissionais. “Muitos que moravam fora estão retornando para o bairro, como aposentados ou como empreendedores”, conta Beto.  

Segundo Beto, a Vila Fátima surgiu em terras ocupadas pelos ex-escravos do Coronel Francisco Xavier Chaves e do Quilombo Dom Silvério. O Quilombo Dom Silvério surgiu em 1838 com o nome “desairoso” de “Comunidade do Porqueiro”, que pertencia ao senhor José Antônio Rodrigues. Ainda no século XIX, dois grupos de negros se juntaram nessas terras, que serviam de passagem para os negros do quilombo e de moradia para os escravos da Fazenda do Mosquito. O nome do quilombo foi uma homenagem ao bispo de Mariana, Dom Silvério, “grande defensor dos negros”, que, em 1911, visitou a comunidade.

Filho do bairro

Beto nasceu na Vila Fátima em 1966 e viveu toda a infância no bairro. Com 17 anos, mudou-se para São Paulo, onde morou cerca de um ano, retornando à origem. “Era um dos bairros mais sofridos da cidade, onde morava a classe pobre. Não tinha luz, não tinha água nem calçamento e saneamento básico. A assistência à saúde era precária.”

A maioria dos moradores fazia trabalho braçal em fazendas da região. As crianças tinham de estudar no centro da cidade, mas não tinham calçado, roupa nem material escolar, relata Beto.

Há cerca de 30 anos, primeiro chegou a energia elétrica, depois a água e, gradativamente, a infraestrutura. Mas a mudança em Vila Fátima não foi apenas física e material.

Em 1988, Beto promoveu a primeira reunião com os moradores do bairro para discutir a importância da consciência negra. “Assim, foi plantada a primeira semente do nosso movimento.”

Capoeira e teatro

O primeiro trabalho social na comunidade foi a criação do grupo de capoeira. “Com o mesmo grupo, iniciamos o trabalho de teatro. Era uma maneira de falar do negro, de conscientizar.” Eram peças sobre o negro, apresentadas no salão paroquial para a população. “A reação foi muito boa desde o início”, comemora Beto.

Uma nova fase foi inaugurada com o COSNEC, em 28 de junho de 2009, no bairro Vila Fátima. O grupo surgiu a partir da realidade de que os afrodescendentes representam mais de 50% da população do município. Apesar de não ser reconhecida oficialmente como comunidade tradicional, a população do bairro Vila Fátima é praticamente toda afrodescendente.

“O objetivo do CONESC era trabalhar o resgate com o tripé: parte social, parte cultural e religião”, resume Beto. Na parte social, foram realizadas atividades, como cursos de costura (35 profissionais formados) e a fábrica de vassouras (matéria-prima eram garrafas PET), em parceria com o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social).

A ideia era proporcionar complemento de renda para os moradores do bairro, explica Beto. A fábrica chegou a empregar 20 a 30 pessoas, funcionando num galpão fornecido pela prefeitura. Atualmente, está desativada por falta de local.

Cultura e religião

Na parte cultural, o foco foi o resgate da verdadeira história do bairro, acrescenta Beto. “Os moradores antigos estavam morrendo e a história morrendo junto. Então criamos um grupo para documentar esses relatos.”

Foram resgatados vários tipos de dança, como a dança do bate-paus que os negros do bairro praticavam. “Quando eu era criança, a dança era com sanfona. Hoje, nós a colocamos no estilo afro, com atabaque”, conta Beto.

Na parte religiosa, foi resgatada a matriz africana, principalmente a missa inculturada, cujos atos são encenados com rituais africanos. Beto destaca o apoio do padre Raimundo Inácio, já falecido, que “realmente deu toda a força. Toda Festa do Rosário, ele convidava o grupo para participar dessa missa.”

Além da missa inculturada, na Festa do Rosário há apresentações de congado, inclusive com a participação de grupos de outros municípios. “A comunidade de Vila Fátima preserva suas tradições e costumes, mantendo viva a pujança de sua banda de congado, grupo de capoeira e folia de reis, além de outras atividades apoiadas pelo CONESC”, resume Beto.

Legislação

Uma importante viragem no movimento foi a legalização que abriu o caminho para a captação de recursos e a realização de parcerias com a prefeitura, o CRAS e a UFSJ (Universidade Federal de São João del-Rei), assinala Beto.

Do seguinte conjunto de leis, a primeira é a Lei 881 (de 02/10/2009), aprovada pela Câmara Municipal e sancionada pelo então prefeito Helder Sávio Silva, que instituiu feriado municipal o Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro. Outra lei importante foi a de número 925 (de 25/10/2010), também aprovada na administração de Helder Silva, que declarou de utilidade pública o COSNEC.

A partir dessa legislação, foi criada a Semana da Consciência Negra, que acontece entre os dias 15 e 20 de novembro. “A legislação facilitou o repasse de recursos públicos para as despesas com palestrantes, transporte, apresentações de grupos folclóricos e shows”, explica Beto.

Também permitiu a captação de recursos para a aquisição de máquinas de costura industriais do projeto “Profissão e renda”, bem como para o repasse de recursos indicados pela Câmara Municipal.

No caso da fábrica de vassouras PET, a legalização foi importante para elaborar o projeto que permitiu a aquisição de equipamentos e máquinas com recursos fornecidos pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Sede e organização

Na sede do COSNEC, denominada “Centro Afrodescendentes”, na Rua João XXIII de Vila Fátima, acontecem atividades como reuniões, cursos e ensaios. Ali já houve cursos de culinária (rosquinhas, broas, pamonha etc.) e de fabricação de bonecas negras de pano.

Está nos planos um grande projeto social destinado exclusivamente a crianças do bairro, conta Beto. A ideia é trabalhar com música, dança e folclore (congado e folia de reis).  

Um novo reforço ao trabalho na comunidade negra é a Lei 1244, aprovada em 3 de junho de 2019 pela Câmara Municipal e sancionada pelo prefeito Fúvio Olímpio de Oliveira Pinto, que cria o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR) e o Fundo Municipal da Promoção da Igualdade Racial (FUMPIR).

Vinculado à Secretaria de Assistência Social, o COMPIR é um “órgão colegiado de caráter permanente, consultivo, normativo, deliberativo, avaliador, propositivo e fiscalizador, encarregado de assessorar o Poder Público Municipal em assuntos referentes ao estudo de políticas que visem à promoção da igualdade racial.”

O Conselho é composto de oito membros, com respectivos suplentes, ou seja: quatro da administração municipal e quatro da sociedade civil (COSNEC, Folclore Afrodescendentes, Comunidade Afrodescendentes do Bairro Vila Fátima e Afrodescendentes da Zona Rural).

O FUMPIR tem a função de captar e repassar recursos financeiros destinados à política de atendimento e aos programas de promoção, proteção e inclusão da comunidade negra e de outros grupos étnico-raciais. A captação e a aplicação serão vinculadas às decisões do COMPIR.

As receitas do FUMPIR serão provenientes de recursos de órgãos federais e estaduais vinculados à Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial; transferências do Município; doações do setor privado, pessoas físicas e jurídicas; rendimentos eventuais (inclusive de aplicações financeiras) e acordos e convênios.

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