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A arte da arte

27 de Marco de 2024, por Renato Ruas Pinto

Por coincidência, logo após escrever sobre uma loja de discos que ainda resiste aos novos tempos da música digital, recebi uma dica de um documentário sensacional. Ele conta a história do importante estúdio de design inglês Hipgnosis, que foi responsável por criar capas memoráveis de discos que marcaram a história do rock. Muitas capas de disco se tornaram parte integral da obra e é impossível falar de certos álbuns sem lembrar delas. Artistas investiram tempo e cuidado na criação de capas, pois entenderam a força que elas carregavam enquanto transportavam e protegiam a música em seu interior. O estúdio Hipgnosis, com muita inventividade e o uso competente das técnicas disponíveis, fez história com algumas capas que hoje são verdadeiros marcos.

O documentário se chama “Squaring The Circle”. Uma tradução livre seria algo como “fazendo a quadratura do círculo”, uma relação direta entre um problema clássico da matemática e as formas da capa e do disco. Ele está disponível no YouTube; infelizmente, apenas em inglês. Faço votos para que alguma alma caridosa coloque legendas em português o quanto antes para que mais pessoas possam assistir. O documentário reúne depoimentos de um time estelar que conta com David Gilmour, Roger Waters, Paul McCartney, Peter Gabriel e outros. Conta também com depoimentos de um dos fundadores do estúdio, Aubrey “Po” Powell, e imagens de arquivo dos outros sócios, StormThorgerson e Peter Christopherson, já falecidos quando da gravação.

Storm e Po eram amigos de adolescência daqueles que viriam a fundar o Pink Floyd. Estudaram arte e começaram a trabalhar profissionalmente com fotografia, quando foram procurados pelos amigos do Pink Floyd para produzir a capa de seu segundo álbum, “A saucerful of secrets” (1968), que marcou a saída de Syd Barret e a entrada de David Gilmour na formação clássica do grupo. Em uma era em que não existia Photoshop e afins, fizeram a capa com uma intrincada montagem de fotos e texturas. A partir daí, outros trabalhos começaram a aparecer e o estúdio cresceu em tamanho e importância. A consagração viria com a icônica capa de “The dark side of the moon” (1973) e seu prisma dividindo a luz em várias cores. De uma simplicidade incrível, a capa ganhou vida própria e se tornou um símbolo pop explorado e referenciado de todas as formas, mídias e linguagens que se pode imaginar.

A partir daí, o estúdio viraria uma referência e seria buscado por artistas, como Paul McCartney e Led Zeppelin. Eram tempos de dinheiro farto, orçamentos caros e extravagâncias, como viajar de Londres para o Havaí para fazer apenas algumas fotos ou pousar de helicóptero em um pico nevado nos Alpes Suíços para fotografar uma estátua para a capa da coletânea “Wings Greatest”, da banda de Paul McCartney. Na virada dos anos 70 para os 80, entretanto, as coisas começam a mudar. Em termos musicais, o rebuscamento e a sofisticação das produções de rock, em especial o progressivo, são substituídos pela simplicidade e o som cru do Punk e New Wave.

As capas também ficaram mais simples, muitas vezes só retratando os membros da banda. Storm pressentiu a mudança e convenceu os parceiros a transformarem o estúdio em uma produtora de filmes. O novo negócio, porém, não prosperou e foram à falência em dois anos, pondo fim à história de um estúdio lendário.

O documentário conta a história com detalhes e aborda não só o processo criativo do trio, mas também a curiosa interação com músicos e bandas. Capas tiveram sua importância e andaram junto à própria música dos álbuns. O CD, por conta das dimensões, já sacrificou muito essa arte e o tiro de misericórdia veio com a música digital. Assim, o documentário abre uma janela muito interessante para um passado ainda próximo. Quem curte um disco vai assistir com saudade. As novas gerações, por sua vez, talvez percebam o que nós perdemos com os novos formatos.

 

P.S.: Após finalizar a coluna, constatei que o vídeo foi retirado do YouTube. Agora a solução é esperar ser disponibilizado em algum streaming ou buscar em outras fontes.

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