Época das festas populares do Espírito Santo, na ilha de Santa Maria


Cultura

José Venâncio de Resende0

foto

Em Portugal, começa a temporada das tradicionais Festas do Divino Espírito Santo. Na ilha de Santa Maria, nos Açores, os eventos já vão acontecer a 28 de maio (Império do Pentecostes na copeira de Santo Espírito) e a 4 de junho (Império da Trindade). Os Impérios do Espírito Santo são a festa mais popular e genuína que se pode encontrar em Santa Maria, com a singularidade dos seus foliões e das suas sopas (água, sal, carne de vaca, cebola e repolho, acompanhada de pão e hortelã) se destacando das demais ilhas açorianas pela simplicidade e originalidade. A festa mariense que envolve este prato é de acesso gratuito e geral a toda a comunidade.

As Festas do Espírito Santo surgiram há mais de 700 anos, em Alenquer (distrito de Lisboa), relacionadas com a dádiva de comida aos pobres pela Rainha Santa Isabel. Difundiram-se no continente e espalharam-se por territórios povoados e colonizados pelos portugueses. Foi sobretudo no arquipélago dos Açores que elas mais se desenvolveram, de acordo com o antropólogo e professor João Leal*. “Atestada pela sua presença exaustiva em todas as freguesias do arquipélago, esta vitalidade das Festas do Espírito Santo expressa-se ainda no modo como, a partir dos Açores, elas se difundiram nos principais contextos de acolhimento da emigração açoriana: o Brasil, no passado, e os E.U.A e o Canadá, mais recentemente.”

Partilha

Foram justamente as Festas do Espírito Santo que proporcionaram a aproximação recente entre a ilha de Santa Maria e o município de Alenquer, denominada “partilha e aprendizagem” pelo vice-presidente da Câmara Municipal de Vila do Porto, Domingos Barbosa. Tanto que o vice-presidente do município de Alenquer, Rui Costa, visitou durante dois dias (5 e 6 de abril) a ilha açoriana para conhecer a experiência mariense das Festas do Divino. Os dirigentes políticos visitaram pessoas ligadas a estas tradições – com destaque para o Império da Trindade -, a confecção do pão para as festas, os copeiros e os foliões que, em Santa Maria, diferem das restantes ilhas açorianas.

“Foram momentos verdadeiramente extraordinários de convívio e de partilha entre folias, cruzando-se atuações, alvoradas e falsetes”, resume Domingos Barbosa ao contar a experiência de percorrer as freguesias da ilha e falar com foliões, copeiros e cozinheiros. “Destes homens, guardamos a fé, a fraternidade e a devoção que transbordam das suas palavras, os olhares de alegria e emoção, mas também a sua preocupação e receios sobre o futuro das Festas ao Divino.”

Os vice-presidentes dos municípios de Vila do Porto e Alenquer visitaram ermidas e copeiras, conta Barbosa. “Na Cooperativa de Artesanato de Santo Espírito, o deleite do cheiro quente e do paladar doce das roscas, do pão da mesa e de biscoitos, uma tradição que resiste pelas mãos de mulheres determinadas a preservar a herança recebida das suas avós ancestrais. Tivemos, não poderiam faltar, Sopas de Império. O Bodo mariense, apesar de simples e humilde - pão, carne e vinho -, é magnificente na sua universalidade, o que o torna único e genuíno.” E como não há império sem folia, nas Sopas juntaram-se a maioria dos foliões da ilha, “num claro reconhecimento do seu papel central na realização dos impérios marienses e da sua importância na preservação das nossas festas ao Divino Espírito Santo”, concluiu Barbosa. 

Os Impérios

Na primeira parte do seu livro, João Leal estuda detalhadamente os Impérios – como são localmente conhecidas as Festas do Espírito Santo – na Freguesia de Santa Bárbara (ilha de Santa Maria). Em “A Parte dos Deuses”, o autor destaca o significado religioso do conjunto de dádivas e contra-dádivas de natureza alimentar na sequência dos festejos; nos capítulos “A Parte dos Homens I” e “A Parte dos Homens II”, explora a ligação entre esse conjunto de dádivas e contra-dádivas e a reiteração dos principais círculos de relacionamento social em Santa Bárbara: o parentesco e a vizinhança, em primeiro lugar, e o lugar e a freguesia, depois. 

Já no capítulo “O Tempo dos Impérios”, examina a natureza desse empreendimento, a começar pela dimensão sazonal dos festejos, chamando a atenção para a importância do contraste entre os Impérios e os “ciclos” do Carnaval e da Quaresma – “que antecedem imediatamente o período tradicionalmente consagrado à realização dos festejos”. Por fim, examina as novas formas que tende a assumir na freguesia o vínculo entre ritual, estrutura social e tempo. Assim, o capítulo “Os Dois Imperadores” busca uma “caracterização mais exata do imperador – designação atribuída ao promotor dos festejos – com incidência particular nas ´pulsões´ de caráter individualista, ligadas a motivos de prestígio individual a que, por seu intermédio, os Impérios são submetidos”.

De forma sintética, o fio condutor desta análise foi fornecido pela presença no ritual de “um conjunto de refeições, distribuições e dádivas de natureza alimentar”. Assim, esta associação do alimento às cerimônias cíclicas “expressa tanto na elevada quantidade de alimentos requeridos pelos festejos como no número de casas e indivíduos abrangidos pela sua circulação”. Do ponto de vista dos objetivos de caráter religioso, “O dispêndio alimentar requerido pelos festejos é encarado, quer pelos seus promotores individuais – imperadores ou mordomos – quer pelo conjunto da sociedade, como uma forma de pagamento de promessas individuais e de garantia da proteção divina”. 

Mas o autor considera mais relevante a associação entre as Festas do Espírito Santo e a linguagem da dádiva alimentar. “Começando por circular num âmbito mais restrito, ligado às relações sociais próximas de cada imperador ou mordomo – parentes, vizinhos, amigos – o alimento opera antes do mais como um instrumento de reiteração dessas relações sociais. Num segundo momento, porém, a sua esfera de circulação conhece um alargamento decisivo que faz com que as Festas do Espírito Santo se vinculem a ideias de reafirmação das instâncias mais globais sobre as quais assenta o sistema social local: o lugar e a freguesia.”

*As Festas do Espírito Santo nos Açores - Um estudo de antropologia social, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1994.

Veja o vídeo A tradição das Sopas do Divino Espírito Santo na ilha de Santa Maria

 

 

 

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário