Pandemia reduz ida de peregrinos a Santiago em ano santo jacobeu

Ano jubilar de Compostela será celebrado este ano porque dia 25 de julho coincide com o domingo; papa prorrogou até 2022.


Religião

José Venâncio de Resende0

fotoHospitaleiro e peregrino Lúcio Lourenço, em frente à Catedral antes da pandemia.

O impacto da pandemia no Caminho de Santiago levou o Papa Francisco a prorrogar o ano santo jacobeu, que assim se estende até o final de 2022, permitindo distribuir os peregrinos ao longo de dois anos. O anúncio foi feito pelo núncio apostólico na Espanha, D. Bernardito Auza, em 31 de dezembro de 2020, durante a abertura da “porta santa” na Catedral de Santiago de Compostela.

O ato de abrir a “porta santa” dá início ao ano santo jacobeu (ou jubilar) de Compostela, que é celebrado desde o século XII quando o dia 25 de Julho, festa de Santiago, coincide com um domingo. É justamente isto que ocorre em 2021.

Em 1122, o Papa Calisto II autorizou a Diocese de Santiago de Compostela a conceder uma “indulgência plenária” a todos os que visitassem o sepulcro do Apóstolo a cada ano em que a festa de Santiago coincidisse com o domingo. É o que consta na Bula Regis Aeterni, promulgada em 1179 pelo Papa Alexandre III.

Abraço pelo gel

O fluxo de peregrinos a Santiago de Compostela caiu acentuadamente durante a pandemia. Um exemplo é o Albergue Cidade de Barcelos (ACB), no Caminho Português, que recebeu 654 peregrinos em maio de 2019. Este número caiu para zero um ano depois, em plena pandemia, e foi de apenas 54 peregrinos em maio deste ano, neste que é considerado um dos melhores meses em termos de afluência ao Caminho.

Mas este não será um ano muito diferente de 2020. “Estamos mais preocupados em conseguir continuar a receber os peregrinos em segurança, ainda que sejam poucos, do que promover a vinda das pessoas para o Caminho”, confessa o hospitaleiro Lúcio Lourenço, presidente da Associação ACB. E não tem sido fácil, admite. “Estamos aqui para tentar que continue a haver o Caminho; não vamos fechar a porta a um peregrino. Antes, acolhíamos o peregrino com um abraço; agora, é com um spray desinfetante, justamente o contrário da hospitalidade.”

Segurança sanitária

O Caminho de Santiago sempre foi seguro, em termos rodoviário e de criminalidade, diz Lourenço. “Agora, é a nova vertente, a saúde pública, que precisa de respostas.” E a resposta não é simplesmente deixar de atender os peregrinos. “Quem quiser fazer o Caminho, não vamos fechar as portas a um peregrino.”

Em outras palavras, não se estimula a presença de peregrinos por causa do risco presente nos contatos. A pandemia provocou situações diferentes no atendimento aos peregrinos. A maioria dos albergues públicos simplesmente encerrou suas atividades; já alguns albergues de associações privadas, sem fins lucrativos, optaram por funcionar com restrições. “Alguns albergues associativos, por terem hospitaleiros voluntários, de idade avançada, também tiveram de fechar”, conta Lourenço.

O ACB foi um dos albergues associativos que manteve as atividades, ainda que em condições economicamente não-sustentáveis. Fechou em março e reabriu em junho de 2020, mas passou a exigir reserva prévia. A capacidade de recebimento de peregrinos caiu de 25 para 3 vagas individuais ou familiares; ou seja, em um quarto com três camas pode dormir apenas uma pessoa ou um grupo coabitante.

Na primeira fase da pandemia, o albergue fornecia um kit básico (gel, máscara e proteção de plástico para colchão e almofadas), revela Lourenço. Em 2020, a Câmara Municipal de Barcelos ofereceu 300 desses kits, “mas nós recebemos 700 peregrinos”. A associação, que trabalha à base de donativos, teve de conseguir recursos para adquirir os 400 kits restantes. Este ano, o ACB já acolheu 200 peregrinos, mas não recebeu kits; a situação foi entretanto amenizada porque cada peregrino já carrega o seu frasco de gel e uma máscara individual.

Volta passado

A pandemia fez com que o Caminho voltasse a tempos anteriores ao do turismo de massa, que deu origem ao termo “turigrino”. “Agora, muitos fazem o Caminho de forma isolada (sozinho ou com familiares)”, constata Lourenço. A partilha, mesmo nos albergues, é mais contida.

A massificação acabou por esconder, sob a promoção turística, o trabalho de apoio dos hospitaleiros voluntários e altruístas, que constitui a grande força do Caminho. Pequenas coisas como oferecer uma cama pra dormir e um local para fazer a refeição, possibilitar partilhas e confraternização, dar informações úteis como onde encontrar um mercado ou uma farmácia etc. Este tipo de trabalho que nem sempre é visto e valorizado.

Barcelos é considerada uma “Terra de tradição jacobeia, que recebe bem os peregrinos”, conta Lourenço. Em condições normais, pré-pandemia, a cidade do famoso “Galo de Barcelos” recebeu milhares de peregrinos dos cinco continentes e das várias religiões: “Já tivemos 90, 100 nacionalidades diferentes”. Apenas o ACB recebeu 4.300 pessoas em 2019, número que caiu para 700 peregrinos em 2020, “mas éramos o único albergue aberto no ano passado”.

Com a pandemia, regras nacionais foram adotadas para controlar a circulação de pessoas, incluindo os peregrinos. “Não criamos regras próprias”, refere Lourenço. Os albergues, por exemplo, foram obrigados a pedir contatos (telefone e e-mail) a todos os peregrinos, para que, em caso de alguma ocorrência, as pessoas sejam avisadas e as medidas sanitárias tomadas. A medida mais recente é a exigência de certificado de vacinação digital ou de um teste negativo no momento da entrada em alojamentos, o que inclui os albergues, bem como, em algumas localizações no país, para entrar em restaurantes durante o fim-de-semana.

Sem muros

Apesar das restrições exigidas pela pandemia, não se pode perder de vista a universalidade do Caminho de Santiago. É o único que não tem muros, tanto em termos de fronteiras quanto de acolhimento, disse uma vez John Brierley, autor do Guia de um peregrino para o Caminho de Santiago, em conversa com Lourenço. Ele referia-se ao Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) e à decisão do então presidente norte-americano, Donald Trump, de construir um muro na fronteira com o México.

Quando um peregrino chega ao albergue, “não perguntamos ´quem é´, mandamos entrar; e depois, por motivos legais, é que temos de perguntar ´quem é´”, acrescenta o hospitaleiro do ACB. “No Caminho, não há rigorosamente nada que distinga uns dos outros, somos todos iguais”, reforça Manuel Costa, do Albergue Amigos da Montanha.

Tanto Lourenço quanto Costa ressaltam a importância do diálogo entre os albergues, reforçado com a pandemia. Foi assim que ganhou força a rede informal de comunicação entre albergues, para apoio na obtenção de alojamento e na solução de outras necessidades como alimentação e medicamentos, bem como na aproximação com as juntas de freguesia para melhorar a recepção aos peregrinos. “A única retaguarda de apoio que esses albergues têm são os próprios peregrinos e os hospitaleiros que fazem um trabalho semelhante.”

Ponte e praça

A ponte centenária entre Valença (Portugal) e Tui (Espanha) é o símbolo do esvaziamento do Caminho de Santiago com a pandemia. Trata-se de uma ponte rodo-ferroviária metálica com 318 metros de comprimento, inaugurada em 1886, também conhecida por Ponte de Valença ou Ponte Internacional de Tui, que cruza o rio Minho, na fronteira entre Portugal e Galiza (Espanha). O tabuleiro superior é destinado à via férrea, enquanto o inferior é dividido em espaços para veículos e pessoas.

Provavelmente, ainda não vai ser neste ano santo jacobeu que o Caminho voltará a ter mais presença de peregrinos. Da mesma forma, continuará deserta a famosa Praça do Obradoiro, em frente à Catedral de Santiago, onde as pessoas chegam, se abraçam e se confraternizam. “É uma sensação um pouco triste ver a praça vazia”, lamenta Lourenço.

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Live “Algumas ideias soltas” - https://www.facebook.com/algumasideiassoltasponto/videos/504504484127976

 

 

 

 

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