Resende: Livro “Memórias de um Combatente” e a homenagem aos ex-combatentes na Guerra do Ultramar


Cultura

José Venâncio de Resende0

No centro, o autor José Ferreira acompanhado dos membros da mesa (Foto Ideal Resende).

Foi muito prestigiado o lançamento, em 25 de junho, do livro “Memórias de um Combatente”, do resendense José Ferreira, que cumpriu serviço militar em 1965-1967, como 1º Cabo Sapador, em Angola. O local do evento não poderia ter sido mais sugestivo: o salão nobre dos Bombeiros Voluntários de Resende; afinal, foi neste quartel onde José Ferreira frequentou a escola de bombeiro em 1961. 

José Ferreira foi um dos 3500 jovens de Resende a combater pelo Exército na Guerra do Ultramar, entre 1961 e 1974, período em que as Forças Armadas Portuguesas confrontaram as forças organizadas pelos movimentos independentistas africanos em províncias como Angola, Guiné e Moçambique. Oficialmente, morreram 26 resendenses na Guerra do Ultramar, mas este número pode ser maior, a depender do resultado de investigações (pesquisas) em andamento. 

O livro aborda a experiência de cerca de dois anos de José Ferreira em Angola, nas formas de prosa, poesia e ilustrações. A ideia do livro surgiu quando a professora Fátima Soledade foi entrevistar José Ferreira para o projeto que ela e sua colega, a professora Fátima Silva, desenvolvem em Resende para homenagear, por freguesia, os combatentes mortos e ainda vivos que participaram das guerras ultramarinas. Na ocasião, ela descobriu “um acervo fantástico” que se constituía de dois cadernos: um de prosa e outro de poesia ilustrado com desenhos do autor. 

Foi então que as duas Fátima´s, a Soledade e a Silva, desafiaram José Ferreira a publicar um livro com o conteúdo dos dois cadernos. No início, houve resistência da parte dele, mas ao mencionarem a importância de compartilhar este “tesouro” com os netos, as professoras convenceram o ex-combatente a transformar o acervo em livro. 

José Ferreira foi incorporado ao Exército em 3 de maio de 1966, no Regimento de Infantaria de Viseu, e embarcou para Angola em 21 de janeiro de 1967. Uma semana depois, partiu para o acampamento na região de Bessa Monteiro, norte de Angola, uma viagem inesquecível assim narrada por ele: 

“Foi o maior dos tormentos da minha vida. Chovia torrencialmente. Não havia nada. As picadas estavam intransitáveis. Cada um fazia o que podia. As fardas transformaram-se em farrapos cheios de lama. Cada um andava como podia. O sítio era horrível, era o pior, era onde havia mais porrada. A viagem demorou três dias. Passámo-los sem comer e ao relento. Estávamos a quinze quilómetros do acampamento e a companhia que íamos render não pôde fazer nada devido as dificuldades de acesso. Quando o tempo melhorou, a companhia que íamos render veio socorrer-nos. Estávamos exaustos, cheios de fome e de frio. Os camiões deles ajudaram a tirar os nossos da picada”. 

Dos onze meses que José Ferreira passou em Bessa Monteiro, a maior parte foi no mato. “Em Bessa Monteiro foi o local mais difícil, nunca vi terra mais sangrenta, era do piorio.” De lá, ele foi transferido para Maquela do Zombo, junto à fronteira com o Congo, onde esteve quinze meses. Em meio às operações, José Ferreira ainda conseguiu tempo para escrever as suas memórias. 

A companhia regressou a Portugal a 27 de março de 1969. José Ferreira resolveu ficar em Luanda com a intenção de seguir a carreira militar: Guarda Fiscal no porto da capital angolana ou na Aeronáutica Civil (aeroporto). Mas o ex-combatente teve de despedir-se da farda, desistir da carreira militar, por causa da demora que ocorreu na chegada da ficha de bombeiro que ele pediu ao comandante dos Bombeiros Voluntários de Resende. 

José Ferreira lançou mão da sua profissão de carpinteiro que aprendera em Portugal e abriu uma empresa de construção civil (serviços de carpintaria, eletricidade e construção) em sociedade. Foi responsável por várias obras públicas em Luanda, na Vila Artur de Paiva e em grandes fazendas da região. Casou-se em 1972 em Luanda como uma transmontana que residia em Angola. Voltou a Portugal apenas com as malas contendo os seus pertences. Tinha dinheiro deixei lá dinheiro.

Freguesias 

O lançamento do livro é parte de um projeto maior que começou em 2022, ano em que as duas Fátima´s tiveram a ideia de recolher testemunhos de ex-combatentes e de familiares e amigos de combatentes mortos no contexto da guerra. No caso dos combatentes mortos, Soledade e Silva começaram a faz pesquisa histórica, inclusive sobre o momento do falecimento. “O nosso combate é dar voz aos combatentes e perpetuar as suas memórias e vivências para que as gerações atuais e futuras reconheçam os feitos dos seus antecedentes.” 

As duas Fátima´s fazem todo o trabalho, desde anotações a mão em um caderno que levam consigo, passando por pesquisas documentais, até a digitalização do material recolhido. E para isso utilizam o próprio carro e o próprio telemóvel (celular), arcando inclusive com as despesas como o combustível da locomoção; tudo isto com os respectivos salários de professoras. Elas fazem questão de enfatizar que este é um projeto autônomo, isento e sem vinculações partidárias.

Os testemunhos recolhidos e os resultados das pesquisas históricas são apresentados nas cerimônias realizadas nas freguesias do concelho de Resende, em homenagem aos ex-combatentes. Até o início de julho, já serão oito as freguesias contempladas: Barrô, Resende, São João de Fontoura, S. Martinho de Mouros, Paus, Cárquere, Pachorra e Ovadas (prevista para 1º de julho). As cerimônias nas sete freguesias restantes serão realizadas no decorrer dos próximos meses.

Cada cerimônia no interior da igreja local consiste de abertura (em geral, por algum ex-combatente), de projeção fotográfica/apresentação de vídeo com resenhas biográficas de ex-combatentes mortos e de testemunhos de familiares. Na parte externa da igreja, há o “momento de louvor” com o descerramento de uma lápide onde constam os nomes dos mortos em combate e/ou de um memorial de homenagem aos ex-combatentes da freguesia. No final, há o momento de convívio (confraternização).

“Essas cerimônias têm permitido o reencontro de pessoas que não se viam há décadas e que regressam à terra de origem”, observam as duas Fátima´s. Já participaram dessas cerimônias, como convidados, médicos, enfermeiros e oficiais ligados aos ex-combatentes de várias partes de Portugal, para falar das suas experiências e vivências. Espontaneamente, compareceram a uma das cerimônias o Coronel Lucas Hilário, secretário-geral da direção central (Lisboa) da Liga dos Combatentes, e o presidente da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra do Canadá, Pedro Correia. 

Ao concluir as cerimônias nas 15 freguesias, as duas Fátima´s, que já dispõem de cerca de 100 entrevistas preparadas para publicação, pretendem continuar a recolha de testemunhos e, futuramente, publicar um livro e criar o Museu do Combatente em Resende. Também vão insistir na importância de se construir um memorial ao combatente, uma vez que “Resende é um dos poucos que ainda não tem esse monumento”.

São parceiros de Soledade e Silva neste projeto as juntas de freguesia do concelho de Resende e o Núcleo de Lamego da Liga dos Combatentes. Aliás, as duas Fátima´s colaboram com a Liga Lamego na qualidade de associadas beneméritas, já que são filhas de ex-combatentes. 

Além de Silva e Soledade, falaram durante o evento no auditório dos Bombeiros Voluntários a representante da “Editorial Novembro” (responsável pela publicação do livro), Avelina Ferraz; o presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Resende, Joaquim Alves; o presidente da Assembleia Municipal de Resende, Jorge Machado; e o coronel na reserva Joaquim Monteiro, vice-presidente da Liga Lamego. A apresentação musical esteve a cargo dos músicos Renato Ferreira e Diamantino Nogueira. 

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Blogue coletivo Luís Graça & Camaradas da Guiné

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