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A quem (não) interessa a literatura

28 de Maio de 2025, por Evaldo Balbino

Em meio à ausência de formas, o escritor busca a construção de algo. Isso porque precisamos de sentido. Qualquer coisa que nos falte é motivo de escrita. Até mesmo o canto incessante ao que nos completa diz do que nos falta. Tudo nos é ausência.

E aí entram os símbolos, entre eles as palavras. Carentes de sentido (e carentes justamente por pensar nele), buscamos as significações. E como é difícil entender a vida, compreender as coisas da vida! Bom seria ser como a pedra, que é vazia de si. Sem interior, talvez ela, seixo pequeno ou montanha colossal, não tenha dor e, mais do que isso, sequer pense que existe a dor. Apesar de ter poros, a pedra não sofre – assim pensamos.

Nós pensamos. E isso é tudo e, antes de tudo, isso é nada. Pensar é dadivoso, mas também é um modo dorido de existir. Mais fácil seria não ser. A ausência de ser, vazio sem vazio, não sofre.

Como, porém, somos (e pensamos sobre esse ser à deriva numa trilha de incertezas), eis que surge a arte e nos salva do nosso abissal pensamento.

A literatura é um delicioso perigo, pois nos exibe a nós mesmos num espelho esguio, cheio de dúvidas. Oblíqua superfície a mostrar-nos as nossas tantas faces na busca por si mesmas. Aonde chegaremos? Não se sabe. A perscrutação nunca cessa. E se ela cessa em mim, continuará nos outros. Sei que o ser continuará depois de mim. Continuarão os seres nos seus devaneios, nos seus pensamentos cheios de tudo tão nada, tão sem forma.

No texto literário, sob a égide da poderosa ficção, os meandros tortuosos das realidades encenam-se. As nossas realidades. A quem interessa esse modo de auto-observação? Um autoconhecimento é impraticável, mas podemos exercitar aproximações, podemos bordejar o que somos, ou melhor, podemos nos acercar dos seres esmaecidos que somos.

Nas personagens e nos sujeitos poéticos, nas vozes que falam e são faladas pela ficção, eu me descubro mesmo que em partes. Vejo pedaços de mim nos outros. Sem sair do meu lugar de escritor e de leitor, viajo o mundo, uso máscaras, experimento vidas, atravesso tempos e espaços. E tudo isso para sempre eu voltar os olhos atônitos para mim mesmo e perguntar recorrentemente: Quem sou eu? Como me perfaço no desfazimento das coisas que existem e sentem e pensam sobre a existência e o sentimento?

Perguntas não se respondem. Mesmo assim as mesmas perguntas insistem. E persisto aqui: a quem interessa esse modo de auto-observação?

A literatura é delícia perigosa para os que não têm medo da vida. Para os que não fogem de um mergulho sem volta. Para os que conseguem encarar a espiral esmaecida de si mesmos. Para os que podem ou alcançam ver seus rostos desaguando-se em formas disformes, e talvez por isso mesmo belas. Entender os nossos vazios é maravilhoso. Tão maravilhoso como dói demais. Isso é para os fortes. Tudo isso é nos vermos humanos.

Todos têm o poder de humanizar-se. Ninguém está fora da dança que a performance literária nos oferece. No entanto, muito se diz da literatura, mas a maioria não mergulha de fato nas malhas perigosas, deliciosas e humanizadoras da arte das palavras.

Não me refiro aqui aos que foram e são alijados deste direito: o de acessar a arte que nos humaniza, que nos torna pertencentes ao que há de humano em nós, esta intensa possibilidade de nos desenharmos.

Refiro-me sim a muitas pessoas, a maioria (letradas e de constante vivência em academias, universidades, cátedras inteiras em suas pompas), que citam sim a literatura por esnobismo social.

Falam de Clarice Lispector como se de uma pessoa íntima. Dizem de Dostoiévski como se estivessem de fato imersas em algum texto desse autor, nem que seja apenas um. Falam dele como se estivessem se entregando às memórias do subsolo alheias e próprias. Shakespeare, então, é um cara íntimo citadíssimo! E se se comenta sobre Hamlet, não se está de fato imerso nos meandros da traição, da vingança, da loucura e da moralidade presentes nessa tragédia.

Machado de Assis? Conhecidíssimo! Não faltam citações ao Bruxo do Cosme Velho. E quando discursam sobre a possível traição de Capitu, acabam por não se aperceberem (vivem de apud) que o crucial mesmo é sentir o discurso de um casmurro e neurótico advogado, o distinto doutor Bento de Albuquerque Santiago. Não entendem que a grande maravilha de Dom Casmurro é essa neurose humana e admirável, fantasma que nos atravessa a todos em maior ou menor medida.

Já que citar é a moda, cito aqui para não perder o costume e para ganhar ponto de alguns leitores (os que veneram citações): “Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim”. Termino, assim, essa crônica com essa lição de Bernardo Soares (Fernando Pessoa) no seu Livro do desassossego.

Comentários

  • Author

    Ler e se perder nos meandros do que se leu. Afinal, trata-se de um texto filosófico que questiona o ser ou se trata de um texto literário que questiona a ausência de profundidade nas leituras dos leitores que não vêm o que está ali para ser visto? Ou seria - quem sabe - um texto acadêmico que critica o "apud"? Ai, como é bom ler e não compreender se é isso ou aquilo! Ai, como é bom ler o que leram... Viva o desassossego que você, Evaldo Balbino, consegue marcar a ferro e fogo na pedra de muitos corações gelados que não vislumbram sequer o que é ser humano!


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