MENINO LEMBRANDO UMA NOITE DE JUNHO
02 de Julho de 2025, por José Antônio 0
Foi numa daquelas noites de junho, daquelas em que o céu já começa a se vestir de noite lá pelas seis da tarde. As nuvens ficam cor-de-rosa enquanto pelo chão as sombras se mostram compridas, longas iguais à solidão que gosta de acompanhar a gente por toda a vida.
Era uma dessas noites de junho. O vento cortava gelado as costas dos meninos e as pernas das meninas... queimava de frio os dedos finos das moças e as mãos ásperas dos moços. O vento vinha do morro e virava a esquina. Pegava todo mundo de surpresa.
Mesmo assim, com tanto vento e com tanto gelo, o pessoal da vila não se fez de rogado. Saiu todo mundo pra ir às barraquinhas da quermesse. Música tocando no alto-falante, vestidos estampados indo e vindo, rodinhas de rapazes conversando e rindo, meninos e meninas correndo pra tudo quanto é lado, um homem gritando números em uma das poucas barracas, cheiro de quentão embriagando a alegria simples de um povoado que se contentava com a simplicidade das poucas coisas.
Uma das barracas vendia salgados. A outra, doces e canjica. A última, perto do coreto e também cheia de luzinhas acesas, vendia bebidas quentes e fazia jogos de víspora e pescaria. Praça cheia, alegre e aconchegante. Acho que por isso ninguém tinha ficado sozinho em casa. As casas estavam frias e a praça quentinha. Havia vento, mas tinha quentão.
Resolvi tentar a sorte num dos jogos. Na verdade, eu queria era tirar um prêmio na pescaria e entregar pra Ana Clara, que estava na praça havia meia hora, mas no meu pensamento um montão de tempo. Ana Clara caminhava, passava perto da barraca e nem me via. Que vontade de pegar a sua trança e pescar com ela o seu coração...
Levei a mão gelada no bolso e achei lá uma solitária moeda. Fiquei por ali, encarapitado na cerca da barraca, atento à minha pescaria. Pescador de sonho... de sonho mergulhado na serragem e que não precisa de isca pra ser capturado. Fisguei o peixinho e o peixinho escorregou. Fisguei outra vez e o danado voltou pro chão. Na terceira vez, o peixinho veio pra mim. Não é que tinha um anel pendurado nele?
Peguei o anel, soprei a poeira e fui procurar a Ana Clara. Já imaginava sua trança sem Rapunzel, seu sorriso de princesa sem castelo, perdida ali naquele povoado sem grandes perspectivas, porém única e preciosa nas minhas vertigens de infinito.
Lá estava ela! Cheguei perto e... Ana Clara já tinha anel. Não só anel, mas também um namorado. Rapaz que eu nunca tinha visto na vila. Era gente da cidade. Garanto que foi ele quem deu o anel pra ela. O anel que Ana Clara ganhou do namorado não era de pescaria nem tinha poeira de serragem.
Desci os olhos, fechando as cortinas da minha esperança. Voltei pra barraquinha da pescaria. Joguei o anel na serragem, a serragem no meu sonho e pus meu sonho num balão que estava subindo pra sumir.
O vento continuava soprando frio.
CRIANÇA LENDO A REDAÇÃO SOBRE A MÃE
28 de Maio de 2025, por José Antônio 0
A mãe é muito importante. A mãe é muito bonita. Eu tenho mãe. Minha mãe é a mulher mais bonita do mundo. Tem hora que a minha mãe é muito brava. Quando a minha mãe fica brava, ela fica vermelha e com o olho arregalado. Até a voz fica diferente.
Tem hora que eu demoro pra obedecer, aí a minha mãe fica contando: um... dois... três... Se eu não vou lá no três, ela vem cá no quatro. E aí dói, porque tem tapa.
Quando a minha mãe me chama de meu amor, minha vida, meu sonho, então é porque vem coisa boa. Tem hora que é beijo. Quando a minha mãe me chama falando o meu nome, é porque é coisa séria. Mas tem hora que ela me chama falando o meu nome e o meu sobrenome: aí é pra obedecer senão tem tapa. Igual quando ela fica contando até três.
É bom escutar a minha mãe falar. Mas tem umas coisas que ela fala e que eu não entendo direito. Ela sempre fala que é pra eu não falar mentira. Um dia, eu quebrei um vaso com a minha bola e falei que não fui eu. Ela, então, me segurou e me encarou bem fundo e disse que queria ouvir eu falar o que aconteceu... olhando bem nos seus olhos. Eu falei a verdade.
Mas acontece da minha mãe falar mentira no celular. Uma vez ela falou que estava numa loja e ainda estava lá em casa. Por que ela mentiu? Deve ser porque ela não teve que falar olhando nos olhos de quem estava no outro celular.
De vez em quando, a minha mãe fala com as amigas que está naqueles dias, ou que aqueles dias estão chegando. Ela fala que fica impossível naqueles dias, até briga com o papai. Teve uma vez que eu não quis comer alface e falei que não queria porque eu estava naqueles dias. Se ela podia, eu também podia. Todo mundo ficou rindo de mim. Nunca mais quis saber daqueles dias.
Sabe o que eu fiquei sabendo? A mãe envelhece. Toda mãe fica velha um dia. Mas a minha mãe não. Ela pode ficar de cabelo branquinho e andando com dificuldade, mas ela sempre vai ser a minha mãe bonita.
Ah... ela também faz uma brincadeira legal: ela sorri pra mim, abre os braços e conta até três: um... dois... três... Eu saio correndo e fico lá no meio dos braços dela. E aí eu falo que só vou sair quando eu chegar no cem. Eu só sei contar até dez. Então eu fico um tempão lá.
Cantas mal, hein?
30 de Abril de 2025, por José Antônio 0
Em toda reunião de amigos ou de familiares, existe o desafinado. É uma figura complexa. Enquanto todos cantam harmonicamente, ele consegue achar prazer em notas desconectadas. E nem percebe que está avacalhando tudo.
O triste é que o desafinado é sempre uma pessoa legal. Solícito, alegre, dedicado... Às vezes, é o único que vai a todos os ensaios, com sua costumeira boa vontade. Até carrega instrumentos, se necessário.
Como, então, se livrar dele em serestas ou reuniões de Natal? Quando a questão é a participação em um coral, tem sempre lá aquele maestro com toda uma escala de argumentos técnicos que podem descartar o desafinado sem ofendê-lo. Mas, em corais improvisados e amistosos, como falar para o desafinado que ele não vai cantar justamente porque é desafinado? A coisa se complica ainda mais quando se considera a seguinte verdade: Todo desafinado gosta de cantar.
Uma boa alternativa de deixar o desafinado sem cantar seria encarregá-lo de tocar um instrumento qualquer. Mas o desafinado jamais toca instrumento algum!... Ou, quem sabe, incumbi-lo de cantar apenas no refrão, quando aparecer um lá-lá-lá-lá. No entanto, é nos refrões que o desafinado se esmera mais, tirando o couro do coro. E vai todo mundo para o buraco da dissonância.
Há uma última escolha – cruel – de pôr o desafinado pra escanteio: escalar o indivíduo para cantar todas as canções e mandá-lo ensaiar dois, três, quatro tons acima. No dia em que todos forem cantar, só o coitado estará rouco.
Dá dor de cabeça ficar sorrindo cordial enquanto o desafinado simpático canta...
Às vezes, o dito cujo desconfia que desafinou “um pouco”, e aí entra o nosso gênio inventivo, todo carregado de caridade, ao elaborarmos eufemismos para não magoar o desafinado, pois todo desafinado se magoa com facilidade:
– Você não desafinou. Você apenas canta numa tonalidade paralela.
(Tonalidade paralela... você já ouviu falar disso?)
Tem gente que consola desafinado assim:
– Você canta bem, só que numa tonalidade que nós ainda não alcançamos...
Essa última frase é revestida da mais sórdida quintessência do cinismo: se todos aprenderem a cantar na tonalidade da pauta que só o desafinado traduz, haverá um suicídio uníssono.
Enquanto a coisa não se resolve, o negócio é cantar sob a batuta da democracia. Afinal, todos têm o direito de se expressar.
... mas fica lá, no fundinho do coração, um desejo sincero... não sei se é ditadura sussurrada ou estética chauvinista: bem que podia ser todo mundo afinado numa mesma nota!
IN BOX
26 de Marco de 2025, por José Antônio 0
Devo confessar, sem falsa modéstia, que de vez em quando tenho ideias que considero maravilhosas. E por elas acontecerem, ando sempre com uma cadernetinha para tomar nota. Algumas são boas mesmo. Outras, nem tanto. Mesmo assim, anoto. As que são boas eu aproveito e as ruins são melhoradas para servirem mais à frente.
Já tive ideias impressionantes durante o sono ou até mesmo naquele estado de letargia quando a gente acorda. Por isso que, enquanto durmo, a minha indefectível cadernetinha fica perto de mim, ao lado da minha cama.
Porém, por ironia ou crueldade, muitas das ótimas ideias que tenho me vêm justamente nos momentos em que não posso anotar nada: é quando estou tomando banho. É estranho, mas é verdade. Tenho ótimas ideias no banho. Meus banhos são riquíssimas sessões de epistemologia ensaboada.
Teve uma vez em que fechei os olhos para passar o xampu. De repente, criei uma metodologia para ensinar verbo. Como não podia anotar, passei o resto do banho falando sozinho, repetindo cada etapa do processo. Saí atarantado do box e fui direto para escrivaninha a fim de escrever a tal da metodologia. Até hoje eu a ensino para futuros professores. E foi assim que ela nasceu, fiel a todo parto: nua e molhada.
Num outro banho, eu estava lutando para esfregar as costas quando me ocorreu uma temática fascinante para um romance. Mais uma vez, lá fui eu vestido de Adão quando sai do rio querendo escrever alguma coisa. E a temática vingou. Direto do box.
Também já tive, durante o banho, uma ideia maravilhosa para conquistar o coração de uma mulher. Como é que eu não havia pensado naquilo antes? Claro que iria funcionar! E funcionou. E funciona. Essa eu não anotei. Confesso que a prática não me deixa esquecer. Mais uma ideia nascida em água e sabão.
Ideias são assim mesmo. Elas vêm de situações inesperadas, muitas delas ligadas a coisa alguma. Simplesmente chegam.
Quando lavo a cabeça, tenho a impressão de que elas se ouriçam e começam a escorrer pelo meu corpo, seguindo o fluxo da água. Algumas eu consigo segurar e transformo em coisas que ficam. Outras, tragicamente, descem pelo ralo do esquecimento.
Como aquela que tive num dos últimos banhos. Ligando algumas leituras, relatos e observações, inventei um modo de a pessoa perder dois quilos em duas horas. Verdade! Algo que, acredito, revolucionaria muitos paradigmas da dieta. Como era mesmo a ideia? Ah, sim... basta você pegar um caroço de... ou é a casca? Só sei que tem água morna na jogada... Lembrei: é só colher a raiz da... do... a raiz não, a folha... isso... a folha... a folha de um pé de... Esqueci.
Se eu tivesse saído correndo do box, pelado e molhado, para escrever a ideia do emagrecimento rápido, eu estaria rico. Agora é chorar na toalha, que é o lugar mais quente.
No próximo banho, devo ter alguma outra boa ideia. Mas como não perdê-la? Como evitar que o meu banho seja uma sessão de epistemologia de bolhas? O jeito é contratar uma secretária para ficar ali perto de mim e anotar as coisas enquanto tomo meu banho.
... já comecei a ter ideias maravilhosas!!!
Coroado sem majestade
25 de Fevereiro de 2025, por José Antônio 0
E não é que virei rei?
Andei recebendo, ao longo de meus teimosos dias, o título de rei de alguma coisa. Sem merecer, óbvio! Até mesmo porque quem me coroou foi a hipocrisia das ocasiões.
Uma vez, num ensaio de escola de samba, pedi emprestado um tamborim e lasquei umas pancadas malucas no couro do gato, só para ver como é que era. Antes que o ridículo tomasse o ritmo da agressão física, devolvi o tamborim castigado.
Acontece que um garotinho ficou encantado com a minha performance e me pediu para repetir. Pura inocência de fã à primeira vista... Quando fui embora, ele me olhou sorrindo e me disse maravilhado:
– Tchau, Rei do Tamborim!
Aquilo me bateu mais forte do que as minhas bordoadas caóticas no instrumento.
Mas fui coroado.
Outra vez, numa fila, uma senhora estava com dificuldades para anexar e enviar um arquivo no celular, pois o aparelho travou. Alguns por ali tentaram e também fracassaram. E a mulher, coitada, aflita.
Então, meu lado solidário me empurrou para dentro da fogueira junto com a mulher.
– Posso tentar?
– Claro, meu filho! Por favor!
Eu me apresentei para a tarefa apenas para não ficar omisso. Mas virou compromisso. Como escapar disso? Minha honra estava em jogo.
Peguei o aparelho como se estivesse pegando o alfabeto árabe e tentei encontrar o tal “por onde”. Balancei, bati, soprei, apertei, alisei... acho até que espremi. Num passe de não sei o quê, o celular passou a funcionar e ela enviou o artigo.
Não deu outra: na fila, fiquei conhecido – e aclamado – como o Rei da Informática!
Ainda mais eu, para quem o meu computador é apenas uma máquina de escrever acoplada a uma tela.
Mas fui coroado.
Já fiz carro funcionar dando um pontapé... virei cambalhota no desespero e botei pitbull para correr... até já consegui consertar guarda-chuva com peteleco.
De vez em quando, me aparecem alguns súditos dos meus diferentes e estranhos reinos me pedindo ajuda. Ainda acreditam na minha realeza.
Eu pulo fora, sentindo-me, aí sim, como um rei: o Rei do Xadrez!
Encurralado e tentando escapar do xeque-mate.