A Teia do Mundo

IN BOX

26 de Marco de 2025, por José Antônio 0

Devo confessar, sem falsa modéstia, que de vez em quando tenho ideias que considero maravilhosas. E por elas acontecerem, ando sempre com uma cadernetinha para tomar nota. Algumas são boas mesmo. Outras, nem tanto. Mesmo assim, anoto. As que são boas eu aproveito e as ruins são melhoradas para servirem mais à frente.

Já tive ideias impressionantes durante o sono ou até mesmo naquele estado de letargia quando a gente acorda. Por isso que, enquanto durmo, a minha indefectível cadernetinha fica perto de mim, ao lado da minha cama.

Porém, por ironia ou crueldade, muitas das ótimas ideias que tenho me vêm justamente nos momentos em que não posso anotar nada: é quando estou tomando banho. É estranho, mas é verdade. Tenho ótimas ideias no banho. Meus banhos são riquíssimas sessões de epistemologia ensaboada.

Teve uma vez em que fechei os olhos para passar o xampu. De repente, criei uma metodologia para ensinar verbo. Como não podia anotar, passei o resto do banho falando sozinho, repetindo cada etapa do processo. Saí atarantado do box e fui direto para escrivaninha a fim de escrever a tal da metodologia. Até hoje eu a ensino para futuros professores. E foi assim que ela nasceu, fiel a todo parto: nua e molhada.

Num outro banho, eu estava lutando para esfregar as costas quando me ocorreu uma temática fascinante para um romance. Mais uma vez, lá fui eu vestido de Adão quando sai do rio querendo escrever alguma coisa. E a temática vingou. Direto do box.

Também já tive, durante o banho, uma ideia maravilhosa para conquistar o coração de uma mulher. Como é que eu não havia pensado naquilo antes? Claro que iria funcionar! E funcionou. E funciona. Essa eu não anotei. Confesso que a prática não me deixa esquecer. Mais uma ideia nascida em água e sabão.

Ideias são assim mesmo. Elas vêm de situações inesperadas, muitas delas ligadas a coisa alguma. Simplesmente chegam.

Quando lavo a cabeça, tenho a impressão de que elas se ouriçam e começam a escorrer pelo meu corpo, seguindo o fluxo da água. Algumas eu consigo segurar e transformo em coisas que ficam. Outras, tragicamente, descem pelo ralo do esquecimento.

Como aquela que tive num dos últimos banhos. Ligando algumas leituras, relatos e observações, inventei um modo de a pessoa perder dois quilos em duas horas. Verdade! Algo que, acredito, revolucionaria muitos paradigmas da dieta. Como era mesmo a ideia? Ah, sim... basta você pegar um caroço de... ou é a casca? Só sei que tem água morna na jogada... Lembrei: é só colher a raiz da... do... a raiz não, a folha... isso... a folha... a folha de um pé de... Esqueci.

Se eu tivesse saído correndo do box, pelado e molhado, para escrever a ideia do emagrecimento rápido, eu estaria rico. Agora é chorar na toalha, que é o lugar mais quente.

No próximo banho, devo ter alguma outra boa ideia. Mas como não perdê-la? Como evitar que o meu banho seja uma sessão de epistemologia de bolhas? O jeito é contratar uma secretária para ficar ali perto de mim e anotar as coisas enquanto tomo meu banho.

... já comecei a ter ideias maravilhosas!!!

Coroado sem majestade

25 de Fevereiro de 2025, por José Antônio 0

E não é que virei rei?

Andei recebendo, ao longo de meus teimosos dias, o título de rei de alguma coisa. Sem merecer, óbvio! Até mesmo porque quem me coroou foi a hipocrisia das ocasiões.

Uma vez, num ensaio de escola de samba, pedi emprestado um tamborim e lasquei umas pancadas malucas no couro do gato, só para ver como é que era. Antes que o ridículo tomasse o ritmo da agressão física, devolvi o tamborim castigado.

Acontece que um garotinho ficou encantado com a minha performance e me pediu para repetir. Pura inocência de fã à primeira vista... Quando fui embora, ele me olhou sorrindo e me disse maravilhado:

–  Tchau, Rei do Tamborim!

Aquilo me bateu mais forte do que as minhas bordoadas caóticas no instrumento.

Mas fui coroado.

Outra vez, numa fila, uma senhora estava com dificuldades para anexar e enviar um arquivo no celular, pois o aparelho travou. Alguns por ali tentaram e também fracassaram. E a mulher, coitada, aflita.

Então, meu lado solidário me empurrou para dentro da fogueira junto com a mulher.

–  Posso tentar?

–  Claro, meu filho! Por favor!

Eu me apresentei para a tarefa apenas para não ficar omisso. Mas virou compromisso. Como escapar disso? Minha honra estava em jogo.

Peguei o aparelho como se estivesse pegando o alfabeto árabe e tentei encontrar o tal “por onde”. Balancei, bati, soprei, apertei, alisei... acho até que espremi. Num passe de não sei o quê, o celular passou a funcionar e ela enviou o artigo.

Não deu outra: na fila, fiquei conhecido – e aclamado – como o Rei da Informática!

Ainda mais eu, para quem o meu computador é apenas uma máquina de escrever acoplada a uma tela.

Mas fui coroado.

Já fiz carro funcionar dando um pontapé... virei cambalhota no desespero e botei pitbull para correr... até já consegui consertar guarda-chuva com peteleco.

De vez em quando, me aparecem alguns súditos dos meus diferentes e estranhos reinos me pedindo ajuda. Ainda acreditam na minha realeza.

Eu pulo fora, sentindo-me, aí sim, como um rei: o Rei do Xadrez!

Encurralado e tentando escapar do xeque-mate.

Um simples novo ano

22 de Janeiro de 2025, por José Antônio 0

Não espere tanta coisa de mim. Por favor, não crie expectativas quanto a coisas que não posso oferecer. 

Sou apenas uma sequência de dias.

Sou meramente uma sequência de outras sequências de números distribuídos em blocos com diferentes nomes. Apesar de calculado, sou um desenho mal feito do tempo.

Empurram-me tantos encargos que até fico com medo: “Que o Ano Novo lhe traga felicidades...” “Que o Ano Novo lhe traga muita prosperidade, amor e paz...” 

Gente... por favor! Eu não trago felicidade para ninguém. Nem tristeza. Trago somente números. Uma sequência de números. 

As pessoas é que decidem o que vão fazer nesses números e com esses números. 

E quando surge a obrigação de eu ser bissexto? Meu Deus, é mais um dia de pressão.

Desculpem-me, mas tenho que deixar as coisas claras senão jogam a culpa toda em cima de mim. “Que ano difícil esse...” “Credo! Ainda bem que esse ano acabou...” Convenhamos, o que foi que eu fiz de errado? 

Isso sem falar nas cobranças ingênuas que nascem dos otimismos exagerados: “Tomara que o ano que vem seja igual a esse que passou...” “Tenho certeza de que no ano que vem vou ter mais alegrias ainda...” Eu me sinto como alguém que tem a obrigação irrevogável de trazer presentes. Como se fosse um Papai Noel... de saco vazio mesmo!

Talvez eu seja mesmo inexorável como a matemática e frio como os dicionários. O que fazer? O que é…é!

Quando eu alcanço o 365 (às vezes, o 366), é aquele foguetório no mundo todo. Tem gente que atira frutas ao mar, outros se atiram eles mesmos nas ondas, tem gente que explode rolhas de champanhe… E é aquela porção de gente vestida de branco, chorando, rindo, se abraçando, se beijando, se embebedando… 

Isso é bonito, concordo. Mas essa alegria poderia ser em qualquer dia. Por que é que no último dia da minha lista que todo mundo se lembra de que a esperança existe? Por que nesse último número todos resolvem festejar a vida?

Terminada a barulheira, eu começo a listagem de novo. Estou de volta ao número um. Sinto que todos me olham vorazmente, esperando milagres que não aprendi a realizar. Aos poucos, com o desfile dos sempre mesmos números, as pessoas vão percebendo que os pulinhos nas ondas da praia não foram saltos qualitativos… as frutas jogadas ao mar não deixaram nem uma semente sequer para nascerem em água salgada… o champanhe evaporou com a última expectativa.

E eu ali: firme! Cumprindo a lei de um calendário convencional, exibido em uma folhinha que dia a dia vai se tornando uma folha seca, perdendo o viço da novidade.

Encarem-me assim para que não chamem o Réveillon de Revelhaco. 

Lembrem-se: a semente da alegria, as ondas que podem renovar e a bebida restauradora que realmente sopra vida no coração se encontram não nos meus números, mas na alma de cada um de vocês. Vivam! Sonhem! Amem! Pulem! Cantem! Abracem! Beijem! Apaixonem-se pelo momento. É nele que a vida está. É nele que a mudança acontece, pois o seu momento é somente seu. Irrepetível. Tão intenso que está além de uma simples sequência de 365 dias. Ou 366.

Vaquinha de presépio

25 de Dezembro de 2024, por José Antônio 0

Olá!

Eu sou uma vaquinha. Vaquinha de presépio.

Você está olhando o presépio e nem presta muita atenção em mim. Eu estou em todos eles. Eu e os meus dois companheiros: o galo e o burro. Às vezes, espalham uns carneirinhos ao redor do estábulo. Mas fui eu que acabei levando a fama de bichinho de presépio. Até mesmo pra insultar alguém que é pasmaceira: “vaquinha de presépio”.

Tem lugares aí pelo mundo em que sou eu o centro das atenções. Na Índia, as minhas primas úberes são cotadíssimas. Ninguém mexe com elas. Elas são sagradas. Se me colocarem num altar por aqui, eu viro vaca profana. Eu é que não vou falar nada. Não sou vaca louca.

Tem muitos anos que eu compareço aqui no estábulo nesses dias de Natal. Sinto-me orgulhosa com isso. Outro dia, o burrinho se queixou de que a gente só fica fazendo número, que a gente é zero à esquerda, não faz falta, que a gente é... vaquinha de presépio mesmo! Onde já se viu? Tire os bichos do presépio e você verá a falta que eles fazem. Nós temos importância. O Criador também quis nascer perto de nós.

Todos os anos vem aqui um trio de reis, eles são Magos. Cada um traz uma coisa: ouro, incenso e mirra. Sabem que o Menino na manjedoura é muito importante. Ninguém traz nada pra nós. Tudo bem. Não somos os principais do presépio.

Os pais do Menino são pobres e não têm muitos recursos. Não conseguiram arranjar um lugar melhor pro filho deles nascer. Aí eles vieram pra cá, vê se pode! Nessa bagunça toda. Eu vi o pai ajeitando tudo para dar um mínimo de conforto pro bebê e pra mãe. Quando o Menino nasceu, uma luz muito bonita invadiu o estábulo. Nunca o nosso recanto ficou tão bonito. O galo não parava de cantar. Parece que havia uma estrela parada em cima da gente.

A minha função e a do burro é ficar perto do Menino, bafejando sobre ele. Coitadinho, ele sente muito frio e os pais não trouxeram muito agasalho. Às vezes, eu olho pro burro e ele olha pra mim. Sorrimos em silêncio, satisfeitos por estarmos aquecendo o Criador. No fundo, gostaria de ter muitos presentes pra oferecer pro Menino. Mas sou apenas uma vaca. O que uma vaca pode ofertar pro Criador? Não é que eu seja mão de vaca, mas vaca não tem bens. O máximo que eu poderia fazer é deixar que me matassem pra que eu pudesse alimentar o Menino. Já pensou? Vaca atolada. Não seria um prato avacalhado, apesar da vaca ir pro brejo.

O Menino vai crescer saudável e inteligente. Terá um coração bom e vai fazer muitos milagres. Ao longo da história, as pessoas vão oferecer a vida pra ele, algumas vão construir templos luxuosíssimos. Serão tantos presentes que nem sei. Pelo que eu conheço dele, em minha limitada inteligência bovina, ele não vai gostar dos presentes luxuosos. Ele é muito simples e humilde. É um bebê diferente.

Eu ofereço apenas o meu bafejo. Não é lá grande coisa, mas pelo menos eu não vou oferecer uma cruz.

Vou parar de falar, pois o Menino está dormindo. Acho que ele está sonhando, posso ver um leve sorriso em seu rostinho. Dorme, Menino! Sonha com todo mundo alegre e sem sofrimentos, todo mundo morando em um lugar cheio de paz e harmonia. Faz isso, Menino, porque os teus sonhos são possíveis de acontecer.

Bela negra árvore

27 de Novembro de 2024, por José Antônio 0

Bati à porta da senzala e ninguém atendeu.

A senzala está vazia.

Nas cafuas do silêncio, ouço ao longe atabaques e lamentos, chibatas e gritos. Pelas paredes e no chão batido, ainda vejo danças e fugas, silhuetas e corpos... espectros e sons que se contorcem entre a memória e a dor.

Não é somente a psiquê humana que cria fantasmas e sombras que assustam. A história também sabe fazer isso.

Mas, aos poucos, a história foi cedendo até deixar ver que a história sempre tem outras histórias. Nas lacunas dos registros, o negro foi tecendo suas representações e cultura. Nos silenciamentos dos relatos oficiais, o negro deu voz às suas canções e ritos. Nas tradições que há por aqui, o negro também plantou a tradição da sua raça.

Porém, dizer que todos os grilhões foram rompidos... afirmar que as chibatas não fustigam mais... assumir que as humilhações são injustiças sepultadas...

Sei lá.

Ainda há alguns preconceitos que se vestem de feitor... e o negro ainda é vítima da dolorosa chibata da exclusão. Ainda há alguns grilhões que devem ser quebrados, alguns troncos a serem derrubados.

Alvos de desconfianças alguns são...        

Disparidade salarial insulta muitos...

Condições sem condições de moradia desonram inúmeros...

Espaço reduzido na mídia afronta uma raça...

Prisões, massacres, sumiços ferem a vida de vários...

São feridas que ainda sangram no dorso de uma raça que sempre ajudou a levar o Brasil nos ombros. São feridas que reclamam pelo bálsamo da reflexão constante, da justiça sensata e da atitude que muda.

Governo, escola, Igreja, mídia, política, esporte, judiciário, arte são canteiros ricos que têm tudo para fazer com que a árvore forte e bela da alma negra continue viva e respeitada. No aconchego de seus galhos, ramos e flores, cabe todo um povo, toda uma nação, toda uma história, todo um Brasil, que jamais pode desprezar os frutos preciosos dessa árvore.