O Verso e o Controverso

Da série os grandes humanistas: Thiago de Mello

27 de Novembro de 2024, por João Magalhães 0

O poeta amazonense Thiago de Mello (foto Templo Cultural Delfos - internet)

Colecionador de recortes de jornal, como sempre fui, em minhas mãos o Estado de S. Paulo, 1987. Ano da constituinte. Propaganda da Vasp. Publica Os Estatutos do Homem de Thiago de Mello, com os seguintes dizeres: “Que o texto do poeta seja uma nova realidade para todos a partir deste ano da Constituinte. Os Estados do Homem são em forma de artigos. São 14 artigos.

Como esta minha coluna leva o título de “O verso e controverso”, desta vez trabalho apenas o verso no sentido do verbete número 1 do Novo Aurélio: “Cada unidade rítmica constitutiva de um poema, ou seja, a unidade de rítmica de uma poesia”. Não no sentido de verso do título da coluna, que é o indiscutível, aquilo que não se constitui objeto de controvérsia.

Peço desculpas ao leitor que conhece a obra de Thiago de Mello, mas, tendo em vista os que não a conhecem, tomei a liberdade de citar o poema mais famosos dele: “Os Estatutos do Homem”.

Artigo I: “Fica decretado que agora vale a verdade / que agora vale a vida / e que de mãos dadas / trabalharemos todos pela vida verdadeira”. Artigo II: “Fica decretado que todos os dias da semana / inclusive as terças-feiras mais cinzentas / têm o direito a converter-se em manhãs / de domingo”.

Artigo III: “Fica decretado que a partir deste instante / haverá girassóis em todas as janelas / que os girassóis terão direito / a abrir-se dentro da sombra / e que as janelas devem permanecer o dia inteiro / abertas para o verde onde cresce a esperança”.  Parágrafo único: “O homem confiará no homem / como um menino confia em outra menina”.

Artigo IV: “Fica decretado que o homem / não precisa nunca mais / duvidar do homem / que o homem confiará no homem / como a palmeira confia no vento / como o vento confia no ar / como o ar confia no campo azul do céu”. Parágrafo único: “O homem confiará no homem / como um menino confia em outro menino”.

Artigo V: “Fica decretado que os homens / estão livres do jugo da mentira. / Nunca mais será preciso usar / a couraça do silêncio / nem a armadura de palavras, / O homem se sentará à mesa / com seu olhar limpo / porque a verdade passará a ser servida / antes da sobremesa.

Artigo VI: “Fica estabelecida durante dez séculos / a prática sonhada pelo profeta Isaías / e o lobo e o cordeiro pastarão juntos / e a comida de ambos terá o mesmo gosto / de aurora”.

Artigo VII: “Por decreto irrevogável fica estabelecido / o reinado permanente da justiça e da claridão / e a alegria será uma bandeira generosa / para sempre desfraldada na lama do povo”.                                                 

Artigo VIII: “fica decretado que a maior dor / sempre foi e será sempre / não poder dar amor a quem se ama / sabendo que é a água / que dá à planta o milagre flor”.

Artigo IX: “Fica permitido que o pão de cada dia / tenha no homem o sinal de seu suor / Mas que sobretudo tenha sempre / o quente sabor de ternura”.

Artigo X: “Fica permitido a qualquer pessoa / a qualquer hora da vida / o uso do traje branco”.

Artigo XI: “Fica decretado por definição / que o homem é um animal que ama / e que por isso é belo / muito mais belo que a estrela da manhã”.

Artigo XII: “Decreta-se nada será obrigado nem / proibido / tudo será permitido / inclusive brincar com os rinocerontes / e caminhar pelas tardes / com uma imensa begônia na lapela”. Parágrafo único: “Só uma coisa fica proibida / amar sem amor”.

Artigo XIII: “Fica decretado que o dinheiro / não poderá nunca mais comprar / o sol das manhãs vindouras. / Expulso do grande baú do medo / o dinheiro se transformará em uma espada fraternal / para defender o direito de cantar / e a festa do dia que chegou”.

Artigo Final: “Fica proibido o uso da palavra liberdade / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano enganoso das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio / ou como a semente do trigo / e a sua morada será sempre / o coração do homem”.

 Um resumo da biografia de Thiago de Mello: Amadeu Thiago de Mello nasceu em Barreirinha, no Amazonas, em 1926. Aí fez seus estudos iniciais. Ingressou na graduação em medicina, no Rio de Janeiro, mas abandonou na metade do curso. Entrou, então, na carreira diplomática, tendo sido adido cultural na Bolívia e no Chile. Sua carreira foi interrompida pela ditadura militar brasileira de 1964. Foi preso e depois se exilou no Chile, onde se tornou amigo do grande poeta chileno Pablo Neruda. Morou na Argentina, Portugal, França e Alemanha. Grande poeta, prosador, tradutor, artista e jornalista multipremiado. Faleceu a 14 de janeiro de 2022 em Manaus. A 34ª Bienal de S. Paulo fez uma homenagem a ele.

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O romance que comoveu muita gente: “Meu Pé de Laranja Lima”

23 de Outubro de 2024, por João Magalhães 0

Não era minha intenção escrever sobre José Mauro de Vasconcelos e seu “Meu Pé de Laranja Lima”, mas algumas coincidências me aconselharam a fazê-lo.

A primeira. Pondo em ordem alguns recortes do jornal O Estado de São Paulo, topei com uma reportagem de Maria Fernanda Rodrigues no Caderno 2, edição de 2017, que merece esta longa citação: “Há 50 anos, José Mauro de Vasconcelos escrevia o best-seller ‘O Meu Pé de Laranja Lima’. Sucesso juvenil. 150 edições, 2 milhões de cópias vendidas e tradução em 15 idiomas. Para marcar a data, a Melhoramentos antecipa o lançamento de uma edição comemorativa pelos 50 anos. O recorde foi em 1969, com 320 cópias comercializadas, e, embora os números tenham perdido a força com o passar dos anos, eles ainda impressionam. Acredito que as pessoas de diferentes países e realidades se identificam com Zezé porque ele representa tão bem aquela mistura de inocência e travessura das crianças de 5 ou 6 anos. É um personagem apaixonante e uma história inesquecível”.

A segunda. Mexendo em alguns exemplares do nosso Jornal das Lajes, dezembro de 2013, encontrei na coluna “Retalhos Literários”, de meu amigo e companheiro Evaldo Balbino, um consistente e belo comentário sobre o Zezé, com o título: “A pedagógica metamorfose de Zezé”.

A terceira. Sou um dos comovidos, pois, no Natal de 1968, ganhei de presente o romance do casal Maurício e Vilma, dirigentes de uma equipe do Movimento Familiar Cristão, da qual eu era o assistente religioso.

A quarta. O preconceito da crítica literária sobre a obra de José Mauro de Vasconcelos me abala muito, mesmo que não seja a maioria dos críticos. Tenho aqui em mãos, além de “Meu Pé de Laranja lima” (1968), mais 8 livros de José Mauro: “Rosinha Minha Canoa” (1963) – “Barro Blanco” (1968) -  “Rua Descalça” (1969) – “Arraia De Fogo” (1969) – “Banana Brava” (1970) – “As Confissões de Frei Abóbora“ (1970) – “O Palácio Japonês” (1970) - “Doidão” (1971). Coloquei as datas de lançamento desses livros porque o comentário dos críticos, em maioria, foi elogioso quando os mesmos foram publicados. O livro “As confissões de Frei Abóbora”, por exemplo, recebeu o prêmio Jabuti como melhor romance.

A quinta. Este ano faz 40 anos que José Mauro de Vasconcelos nos deixou. Faleceu aos 64 anos, em 1984, em São Paulo. Seu túmulo está no cemitério do Araçá. Merece esta homenagem.

Um pouco de sua biografia. Nasceu em Bangu, no Rio de Janeiro, no dia 26 de fevereiro de 1920. Filho de imigrante português, foi criado, no entanto, pelos tios na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Com 15 anos, voltou para o Rio de Janeiro, onde trabalhou em diversos empregos para se sustentar: carregador de bananas numa fazenda no litoral carioca, instrutor de boxe e operário. Mudando-se para São Paulo, trabalhou como garçom de boate. Iniciou o curso de Medicina, mas abandonou a universidade. Recebeu uma bolsa para estudar na Espanha, mas também não se adaptou à vida acadêmica.

Vida multifacetada. Ator de teatro, televisão e cinema. Sua vida melhora muito quando começa a publicar livros. Ele mesmo dizia que começava a escrever quando o enredo estava todo completo em sua cabeça. Aventurou-se, junto aos irmãos Villas-Boas, em uma viagem pelos rios da região do Araguaia. O resultado foi seu livro de estreia, “Banana Brava”, no qual relata o mundo do garimpo na região. Seu primeiro grande sucesso veio com “Rosinha Minha Canoa”. A obra foi utilizada no curso de Português na Sorbonne, em Paris.

Seu “Meu Pé de Laranja Lima torna-se um clássico da literatura brasileira. Termino estas linhas escrevendo a parte que mais me comoveu dessa grande obra. Sem dúvida, os capítulos finais da segunda parte, sobretudo a amizade com Manuel Valadares – o Portuga. Quando ele morre dentro de seu carro de luxo, esmagados carro e ele por um trem, Zezé entra em desespero e adoece. O portuga era praticamente seu pai. Tinham uma amizade profunda. Dizem que a obra é autobiográfica. Pode ser. O último capítulo, “A confissão final”, mostra que Zezé, o narrador, já é adulto. “Os anos se passaram, meu caro Manuel Valadares [o portuga]. Hoje tenho quarenta e oito anos e às vezes na minha saudade eu tenho impressão que continuo criança. Que você a qualquer momento vai me aparecer me trazendo figurinhas de artista de cinema ou mais bolas de gude. Foi você quem me ensinou a ternura da vida, meu portuga querido”.

Acho José Mauro um grande escritor. Talvez, se algum dia você ler algum livro dele, sobretudo “Meu Pé de Laranja Lima”, concordará comigo.

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Homenagem a uma mulher pioneira e pouco conhecida

25 de Setembro de 2024, por João Magalhães 0

Trata-se de Júlia Lopes de Almeida, que há 90 anos nos deixou, pois faleceu no Rio de Janeiro em 1934. Pioneira por vários aspectos. A escritora, que recebeu uma educação liberal, com o apoio do pai, aos 19 anos de idade já escrevia para A “Gazeta de Campinas”, atividade intelectual incomum para as mulheres da época, uma vez que era monopolizada pelos homens.

Júlia Lopes de Almeida, filha de portugueses ricos e cultos, nasceu em setembro de 1862 no Rio de Janeiro. Cedo começou a escrever para vários periódicos, publicar livros de romances e de poemas, o que mostra bem seu pioneirismo. Seu primeiro livro foi:  “Traços e iluminuras”.

 Foi a única mulher entre os idealizadores da Academia Brasileira de Letras. Apesar disso, foi impedida de ocupar uma cadeira nessa instituição. O lugar foi ocupado pelo escritor português Filinto de Almeida (1857-1945), com o qual havia se casado.

A ABL do Brasil seguia as normas que regiam a Academia Francesa, que não admitia mulheres. Graças a Deus, essas normas mudaram. A primeira mulher a ocupar uma cadeira na ABL brasileira foi Rachel de Queiroz, em 1977. Hoje é uma prática comum. Que o digam Fernanda Montenegro, Lilia Moritz Schwarcz e a falecida Nélida Piñon. Podem ocupar até a presidência. Caso de Nélida Piñon (1996-1997) e Ana Maria Machado (2012-2013).

Outro pioneirismo: suas ideias avançadas para a sua época, já que defendia a abolição da escravatura, a república, o divórcio, a educação formal de mulheres e os direitos civis.

Júlia Lopes de Almeida é associada ao realismo e ao naturalismo. Sua obra mais conhecida — “A falência” (1901) — é marcada pela objetividade, crítica à sociedade brasileira, temática do adultério e determinismo. Assim, a contista, romancista, cronista e dramaturga teve relativo sucesso em sua época, antes de falecer em 30 de maio de 1934, no Rio de Janeiro.

Sua primeira obra publicada, como mencionado mais acima, foi “Traços e iluminuras”. Foi publicada pelo poeta português Filinto de Almeida, seu marido. Ela estava com 24 anos!

Outra prova de seu pioneirismo: quando se mudou para Lisboa, em Portugal, publicou, em coautoria com a irmã, a escritora Adelina Lopes Vieira (1850-1923), um livro de contos infantis. Por isso, é considerada uma pioneira da literatura infantil brasileira.

Durante muito tempo, o sensacional Monteiro Lobato foi considerado pioneiro. Discordo. Foi Júlia Lopes de Almeida.

A contista, romancista, cronista e dramaturga Júlia Lopes de Almeida retornou ao Brasil em 1888. Mas, décadas depois, de 1913 a 1918, morou novamente em Portugal. E, de 1925 a 1931, fixou residência em Paris. Morreu no Rio de Janeiro, em 30 de maio de 1934, vítima de malária, possivelmente contraída em sua recente viagem à África, deixando uma obra de autoria feminina extensa e não só literária, mas também historicamente significativa.

Escreveu para periódicos, como “A Mensageira”, “Única”, “O Quinze de Novembro”, “Kosmos”, “O País”, “A Gazeta de Notícias”, “A Semana”, “Jornal do Comércio”, “Ilustração Brasileira”, “Tribuna Liberal” e “Brasil-Portugal”. Também realizou palestras sobre o lugar da mulher na sociedade brasileira e outras questões nacionais.

Pouco conhecida porque raramente consta dos manuais de literatura brasileira. É pena, porque, a meu ver, ela tem muito valor literário. Somente agora, a editora Companhia das Letras está publicando suas obras. Pelo que contei,uns 7 ou 8 livros.

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Cecília Meireles e seu “Romanceiro da Inconfidência”

31 de Julho de 2024, por João Magalhães 1

Em novembro deste ano, faz 60 anos que Cecília Meireles deixou nosso mundo. Nasceu em 1901. Faleceu em 1964. Devido à importância de suas obras, sobretudo o “Romanceiro da Inconfidência”, merece esta homenagem.

Meu primeiro contato com sua obra é antigo. No ano em que a FUVEST indicava obras de escritores que seriam objeto de questões no vestibular, a obra dela foi indicada como um dos livros. Nós, professores de literatura, tínhamos que preparar os alunos.

Quando comprei, da Editora Nova Aguilar, o livro que contém sua obra poética, fiquei fã do “Romanceiro da Inconfidência” por muitos motivos. Entre eles: gosto pessoal e ancestralidade. Afinal, a cidade onde nasci, Resende Costa (antigo Arraial da Laje) e que tem este jornal com esta coluna, é berço de dois inconfidentes (os Resende Costa pai e filho).

O professor Antônio Medina Rodrigues, de quem fui aluno no curso preparatório para o concurso de efetivo no ensino oficial do Estado de São Paulo, diz o seguinte na análise que fez do “Romanceiro” (Oesp 19/05/94): “De início vem a época e o ambiente, seguidos da conspiração e do fracasso dos inconfidentes; depois vem a morte de Cláudio [Manuel da Costa] e Tiradentes e depois a desgraça de Gonzaga [Tomás Antônio] e Alvarenga Peixoto [Inácio}, e finalmente encerra o Romanceiro com o quadro de tara e debilidade composto por D. Maria. Não é o caso de perguntar se tudo isso não vem a ser uma história versificada, em vez de ser realmente poesia? Claro que não. Tudo isso é boa poesia que contém história (o contrário não vale).”

Antes de apresentar um exemplo, uma explicação para um leitor pouco habituado. O romance é uma forma de verso de tradição ibérica que se estende pela América Latina, de origem muito antiga, desde a Idade Média, transmitido por tradição oral. Versos em redondilha maior (7 sílabas poéticas) ou menor (5 sílabas). Eis um exemplo do “Romanceiro” de Cecília Meireles (na minha contagem, são 85 romances), só um trecho do romance XXXVI: Das sentinelas para o leitor ter uma ideia: “De noite e de dia/por todos lados,/ caminham dois homens,/que vão disfarçados,/pois são granadeiros/e sendo soldados/ alguém lhes permite/bigodes raspados./Ai, pobre do Alferes,/que gira inocente,/sonhando outro mundo,/amando outra gente.../Vai jogando sonhos:/lúdica semente!/brotam sentinelas,/miseravelmente”.

Mais tarde, lecionando literatura infantil para 4º ano de magistério no Colégio Stella Maris, Cecília Meireles era uma escritora que fazia parte do meu programa por causa de seu livro de poemas infantis: “Ou isto ou aquilo”. São 18 poemas. Apresento um: “Jogo de bola: A bela bola/rola:/a bela bola do Raul./Bola amarela,/a da Arabela./A do Raul,/azul/Rola a amarela/e pula a azul/A bola é mole/é mole e rola/A bola é bela/é bela e pura/É bela, rola e pula,/é mole, amarela, azul./A de Raul é de Arabela,/e a de Arabela é de Raul.” Aliás, quando professora primária, criou a primeira biblioteca infantil.

Ouvi, numa destas vídeo-aulas na internet, que ela foi a primeira mulher a abandonar o termo poetisa e usar o termo a poeta, por achar que poetisa diminui o papel da mulher na literatura. Em sua época havia poucas mulheres poetas.

Nem todo mundo conhece sua trajetória, por isso resolvi escrever. A meu ver, sua atuação, suas crônicas, suas traduções e seu gênio poético inseriram definitivamente Cecília Meireles no grupo da poesia moderna portuguesa ao lado de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes e agora Adélia Prado.

A prova disso é que grandes escritores ou críticos literários, como Mario de Andrade incluindo-a no modernismo; Menotti del Picchia; sobre o inconsciente na poesia; Paulo Rónai; sobre as tendências recentes da poesia; João Gaspar Simões, sobre poesia musical; Murilo Mendes e outros publicaram na imprensa comentários muito elogiosos quando seus livros eram lançados. Destaque para o comentário de Murilo Mendes sobre poesia social quando foi publicado “O romanceiro da Inconfidência” (1953).

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Da série Os humanistas: Dom Mauro Morelli (*17/9/1935 / + 10/09/2023)

26 de Junho de 2024, por João Magalhães 0

Dom Mauro Morelli e o Papa Francisco (foto Vatican News)

Era já para eu ter escrito sobre Dom Mauro, com quem me relacionei muito, e minha grande admiração, cujo falecimento em setembro de 2024 fará um ano. Assuntos mais prementes e tratamentos de saúde aconselharam-me a adiar.

Na minha cabeça, o dito do dramaturgo latino Terêncio, que morreu com 25 anos, voltando da Grécia, no ano 159 antes de Cristo: “Senectus ipsa morbus est” (a velhice em si própria é uma doença). É verdade. Pela velhice, os órgãos vão desgastando. Daí a causa mortis de um idoso relativamente sadio: falência múltipla dos órgãos. Portanto, com a idade avançada, não perca tempo, vai fazendo suas coisas, pois os achaques vão chegando. É o meu caso. Em outubro, agora,chego aos 85 anos!

Terêncio deixou também uma outra frase: “Homo sum et nihil humani a me alienum puto” (Sou ser humano e julgo que nada de humano me pode ser estranho, indiferente). A meu ver, tornou-se o lema do autêntico humanismo e inspirou-me a série sobre os grandes humanistas nacionais para esta coluna: Graciliano Ramos, Sobral Pinto, Tristão de Athaíde, Dom Paulo Evaristo Arns etc. Agora Dom Mauro Morelli.

Escrevendo sobre Dom Mauro, infelizmente falecido ano passado, em Belo Horizonte, o leitor me desculpe, pois preciso falar um pouco de mim, quando Dom Mauro era bispo auxiliar de Dom Paulo Evaristo Arns na arquidiocese de São Paulo, capital, junto com Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom Angélico Sândalo Bernardino, todos nomeados bispos pelo Papa Paulo VI e sagrados por Dom Paulo Evaristo Arns.

Dom Mauro Morelli era bispo auxiliar responsável pela região sul da capital e eu, então pároco da Paróquia de São Benedito na Vila Sônia, coordenava para ele as paróquias da região da avenida Francisco Morato. Eram 7 paróquias, indo até a cidade de Juquitiba, mais ou menos a 70 quilômetros da Vila Sônia, pela BR 116. Usando o termo moderno, fui um dos seus vigários forâneos.

Naquela época, eu era pároco e professor em dois colégios. Quando me veio a crise sacerdotal, pedi a ele um afastamento de minhas funções eclesiásticas para pensar melhor se continuaria na Igreja ou pediria a dispensa definitiva do clero. Para meu bem e bem da Igreja Católica, optei pela saída definitiva.

Ficou inconformado. Ofereceu-me até um mestrado em sociologia em Lovaina, na Bélgica, por conta da arquidiocese. Como não aceitei, por questões de consciência, ajudou-me em tudo. Só perdemos o contato quando foi nomeado pelo Papa João Paulo II, em 1981, como primeiro bispo da diocese de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.

A formação de Dom Mauro foi muito profunda. Nascido em Avanhandava, 1935, foi criado em Penápolis, estado de São Paulo. Fez o seminário menor em Piracicaba, o seminário maior de filosofia no Rio Grande do Sul. Em Viamão, estudou teologia, especializando-se nos Estados Unidos, em Baltimore.

Foi uma vida dedicada a uma Igreja Católica profundamente renovada pelo Concílio Vaticano II, já que foi membro da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) no auge de sua atuação.

Uma vida dedicada às liberdades democráticas. Foram anos de luta, mas envoltos de muito medo, para a libertação dos presos e para cessar as torturas e mortes pela ditadura. Disso sou testemunha, tantas vezes participando de vigílias para que tais práticas cessassem. Dom Mauro fez parte dos bispos chamados “vermelhos” pela ditadura, pois ela afirmava que eles defendiam o comunismo. Além de Dom Mauro, Dom Waldyr Calheiros, Dom Adriano Hipólito, Dom Clemente Isnard, Dom Helder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns.

Uma vida dedicada à diminuição da pobreza, de combate à miséria e à fome. Junto com Herbert José de Sousa (o Betinho), fortaleceu a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela vida. Foi um dos fundadores do Movimento pela Ética na Política.

Na eleição em que se elegeria o presidente Lula, foi cogitado para candidatar-se como vice-presidente da República pelo PT. Além de não aceitar, isso lhe rendeu muitas críticas. No entanto, junto com Frei Betto, trabalhou no programa Fome Zero, do governo, até que a politicagem os fez sair.

Em 2005, o Papa aceitou sua renúncia, tornando-se bispo emérito. Passou a residir em São Roque de Minas, na Serra da Canastra, pois desejava fazer 80 anos na nascente do rio São Francisco. Sonhava também com uma viagem a Brasília para defender no Congresso Nacional a melhora do Programa Nacional de Alimentação Escolar.

Assim foi Dom Mauro: grande humanista!

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