Os pés, por sua funcionalidade: locomoção, equilíbrio, pressão, proximidade com a terra etc. geram uma extensa gama de expressões, metáforas e comparações. No Dicionário do Aurélio, entre “pé ante pé” a “um pé no saco” contam-se mais de 50 expressões e os vocábulos compostos no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa somam mais ou menos sete dezenas, indo de “pé-atrás” a “pé de vento”!
Daí, a riqueza de símbolos relativos aos pés como mostra M.C. Amaral de Rosa em seu Dicionário de Símbolos: “Pisar a terra simboliza tomar posse. Pisar o inimigo simboliza a sujeição total. Na crença dos romanos, entrar com o pé direito traz sorte e com o pé esquerdo azar. Os pés descalços são símbolos de humildade; da pobreza consciente. Beijar os pés simboliza a profunda submissão. O lava-pés (Oriente) é símbolo de hospitalidade, símbolo de amizade e amor. O lava-pés de Cristo com os apóstolos presente na liturgia da quinta-feira santa na Igreja Católica simboliza a humildade. Na psicanálise o pé é símbolo fálico. Os seres demoníacos apresentam pés de animais; homens com pés de bode ou de cavalos e mulheres com pés de ganso ou de patos”
E as expressões esconjurativas tipo “Pé de pato, mangalô!”, repetida três vezes? E os amuletos, tipo pé de coelho no chaveiro etc.?
A maioria destes signos e símbolos aparece na Bíblia. “A língua hebraica não faz diferença entre pé e perna; de acordo com o contexto, regel pode significar ou um ou outro. Em paráfrases discretas, a palavra indica ocasionalmente também a região entre as pernas, as vergonhas do homem ou da mulher”.
A maioria das vezes com negatividade. Muito frequente nos salmos: “Senta-te a minha direita, até que ponha teus inimigos como escabelo de teus pés” (Sl 110,1). “Persigo meus inimigos... Eu os massacro, não podem levantar-se, eles caem debaixo dos meus pés” (Sl 18,37-39).
Com zombaria maliciosa: os ídolos de pés de barro. É Isaías 40,20 sugerindo a procura de um artesão hábil para construir “uma imagem que não vacile”.
O contraponto igualmente aparece. “Os teus pés... como são belos nas sandálias, ó filha de nobres” (Ct 7,2). E beleza literária de Isaías, 52,7: “Como são belos, sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anuncia a salvação”.
E assim a prostração aos pés do soberano. Em Israel, muito rara em relação a um rei (Davi) ou um profeta (Eliseu) (1Sm 25,24; 2Rs 4,27.37), mas comum diante de Yaveh (Sl 2,11; 99,5; 132,7).
E como sinal da chegada do Reino de Deus, com paralíticos e coxos recuperando a liberdade da locomoção (Mt 15,30).
O tirar os sapatos. “Na Bíblia, tirar os sapatos e andar descalço está sempre ligado a experiências de debilidade, ao luto (Mq 1,8), à pobreza ou cativeiro”, bem como ao respeito aos locais sagrados. Ainda hoje exigido nas mesquitas muçulmanas.
O lava-pés, como sinal de serviço amigável prestado ao hóspede (Gn 18,3-5; 19,1; 24,32; 43,24). Costume tão antigo que já está presente na Odisseia de Homero: a criada reconhece Ulisses por uma cicatriz, ao lavar- lhe os pés.
Como homenagem e deferência. “E ficando por detrás, aos pés dele (a pecadora) chorava; e com as lágrimas começou a banhar- lhe os pés, a enxugá-los com os cabelos, a cobri-los de beijos e ungi-los com o perfume” (Lc 7,38). “Então Maria, tendo tomado uma libra de um perfume de nardo puro, muito caro, ungiu os pés de Jesus e os enxugou com seus cabelos” (Jo 12,3).
Como expressão de amor, quando feito por mulheres ou crianças ao pater familiae, ou como sinal de respeito, quando o discípulo lava os pés do mestre.
“Enquanto o lava-pés achava-se entre as inevitáveis tarefas caseiras da mulher, era impensável que um homem livre se entregasse a tal serviço de escravo. Tanto mais revolucionário deverá ter parecido, quando Jesus mesmo, em plena liberdade, assume o vergonhoso serviço do lava-pés. Daí o espanto inconformado de Pedro: “Senhor, tu a lavar-me os pés!?” (Jo 13,1-14).
(Citações: SChroer & Staubli: “Simbolismo do Corpo na Bíblia”)
Dener L. Silva - 19/03/2020
Muito bom! O assunto é interessantíssimo. Se há apenas uma forma de interpretar ou compreender um símbolo e seu significado então, a confusão não teria lugar. Por haver, justamente, múltiplas possibilidades, é que nos vemos nesse emaranhado de interpretações. Melhor ainda é saber que, para reduzir - não suprimir, pois Ele continua sendo Mistério - o próprio Verbo se fez carne e sua atração nos faz compreender a ponto de podermos dizer: "Sim, creio". Abraços!