Como já vimos, a metáfora semítica se detém mais na função do órgão do que no seu formato ou aparência. Em vez do olho, o olhar; em vez do ouvido, o ouvir.
O olho. “Como és bela minha amada, como és bela! São pombas, teus olhos, escondidos sob o véu" (Ct 4,1). “Seus olhos são pombas à beira de águas correntes” (Ct. 5,12 e 1,15), dizem os amantes um ao outro no “Cântico dos Cânticos”. Isso significa: teus olhares são mensagens de amor; o que teus olhos me dizem manifesta teu amor, tal como as pombas anunciavam a irradiação erótica das deusas do amor do Antigo Oriente, para quem elas eram sagradas”.
Os olhos como irradiação de beleza: “Lia tinha o olhar terno, e Raquel era bela de se ver e de se olhar” (Gn 29,17); como expressão de cuidados: Deus olha por você; como sinal de imortalidade, como entre os chineses”.
Mas também no sentido de conferir, de investigar, como olho controlador. No seminário menor onde estudei, no salão de estudos, na parede, no alto da mesa onde ficava o padre diretor, havia em letras garrafais a frase ameaçadora: “Deus te vê”! Como portador de coisas ruins, o temível mau-olhado, o olho invejoso de Sara para a serva Agar (Gn 16), dos filhos de Jacó para José (Gn 37), de Saul para Davi (1Sam 18,10s) etc.
Ouvido e orelha. Em sociedades de maioria analfabeta, os ouvidos têm um papel fundamental no aprendizado e a linguagem se reveste de signos mnemônicos. A consequência são os vários símbolos da orelha, por exemplo. Orelhas grandes simbolizavam juízo, sabedoria e imortalidade entre os chineses. Na África, a orelha tem significado sexual e na idade média era considerada sede da memória.
Na Bíblia, a frequência maior é o ouvido como símbolo da comunicação. “Em Israel eram consideradas sábias, aquelas pessoas cujos ouvidos eram abertos e que por isso tinham adquirido conhecimentos e experiências. Os textos precisam ser apropriados aos ouvidos, do contrário são de novo esquecidos. A forma encadeada, a dupla formulação de quase todas as declarações, os poemas alfabéticos e muitos outros recursos retóricos serviam como “abridores-de-ouvidos” (Schroer e Staubli).
Estabelece-se uma estreita relação entre Yaweh (Javé) e as pessoas por meio de um verdadeiro ouvir e ser ouvido, pois pressupõe-se naturalmente que Deus também tenha ouvidos capazes de ouvir.
Como símbolo de obediência (faz lembrar o nosso “puxão de orelhas”!), pois, há que se seguir a voz do Senhor. “A obediência é preferível ao sacrifício e a docilidade à gordura de carneiros [sacrificados no templo] (1Sam 15,22).
Também de pertença. Conforme Êx 21,6 e Dt 15,17, um ritual israelita prescrevia que a orelha de um escravo ou escrava que, de livre vontade, quisessem permanecer com seu senhor, fosse perfurada como sinal de que tal pessoa então pertencia inteira e totalmente à casa. Em todo o Oriente, costuma-se tornar visível a pertença a uma determinada divindade por meio de adorno nas orelhas (Gn 35,4 e Êx 32,2s).
Nariz. “Símbolo de coisas agradáveis e alegres. Gn 2,7: “Então Iaweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida...”; (Ct 7,9): “O sopro de tuas narinas perfuma como o aroma das maçãs”; Gn 24,22: “O homem [enviado de Abraão para conquistar Rebeca para ser esposa de seu filho Isaac] tomou um anel de ouro pesando meio siclo, que pôs em suas narinas...”; repetido no v47: “Então eu coloquei este anel em suas narinas (nosso moderno piercing?!) e estes braceletes em seus braços”.
No “Cântico dos Cânticos” o nariz da amada é comparado a uma torre sobre o Líbano voltada para a ambicionada cidade-oásis de Damasco: “...teu nariz como a torre do Líbano voltada para Damasco...” (Ct.7,5). Deve-se pensar não no tamanho do nariz, mas na qualidade digna de respeito e veneração do nariz e de sua dona amada”.
Mas igualmente do mau cheiro de excrementos e cadáveres. Am 4,10: “...Fiz subir às vossas narinas o mau cheiro de vossos acampamentos...”. Da fúria, quando Iaweh ameaça o rei da Assíria com a mesma humilhação e castigo que era colocar uma argola no nariz ou lábio inferior dos reis vassalos desobedientes, conduzindo-os como animais para a zombaria do povo: “porque tremeste de raiva contra mim e tua arrogância subiu a meus ouvidos porei meu anel em teu nariz e um freio em teus lábios; e far-te-ei voltar pelo caminho por onde vieste” (2Rs,19,28).
Resumo com Schoer e Staubli: “No culto, procurava-se acalmar o irascível nariz de Deus por meio do agradável odor dos holocaustos. Talvez não seja por acaso que no tempo da dominação assíria, especialmente incômoda para o nariz de Deus, tenha virado moda a queima de preciosos incensos para a intensificação desse efeito aplacador. A julgar pelas liturgias ortodoxas e católicas, a receita se conservou até hoje”.
(Fontes: Schoer e Staubli: “O Simbolismo do corpo na Bíblia”: Rômulo Cândido de Sousa: “Palavra, Parábola”: Maria Cecília Amaral Rosa: “Dicionário de símbolos – O alfabeto da linguagem interior”).