Retalhos Literários

O culto à vida

27 de Novembro de 2024, por Evaldo Balbino 0

Um sobrinho de minha mãe faleceu hoje no fim do dia. Notícia que me chegou há pouco, por telefone. As telecomunicações, como todo e qualquer veículo comunicacional desta vida, carregam boas e más notícias. Esta, creio que ruim, me chegou agorinha mesmo. Meu pai me disse, assim que perguntei por ele, por meus irmãos, cunhados e sobrinhos: “Quem faleceu hoje foi o Zezé Tiago, marido da Chica”.

Um pouco mais novo do que minha mãe esse sobrinho, talvez um pouco mais velho – idades que, por fim, regulavam entre si, uma perto da outra.

Lembro que ele estivera presente no dia em que minha mãe se fora. Meus olhos baços de dor, úmidos de agonia, e mesmo assim puderam vê-lo tristonho no velório. Apertos de mão, olhares, condolências verbal e gestualmente distribuídas, e lá estava o sobrinho de minha mãe, ajudando-nos a velar o corpo dela já se despedindo desta vida.

Falei com meu pai algumas palavras usuais, porém verdadeiras. Tipo esta vida passa mesmo, pouco mais de dois anos depois da mãe, a Chica com certeza está triste (ela e os filhos), oremos por todos eles para que tenham força nesse luto...

Do outro lado da linha, a concordância do meu pai. A vida é isso mesmo, meu filho. Tudo passa. “E amanhã vou lá no Ribeirão, no velório. Ele teve no velório dos seus irmãos e da sua mãe. Agora vou lá pagar. Tenho que ir, não tenho?!”

Nas palavras do meu pai, antigas lições que sempre busquei aprender.

Ele vai amanhã ao velório, na zona rural a 14 quilômetros da cidadezinha, mas isso não vai ser por obrigação, não. Nem por costume. Há algo mais nobre do que o dever a ser cumprido, mais importante do que o mero cotidiano, este por si mesmo maravilhoso. Ele vai porque a morte precisa ser cuidada, compartilhada, vivida no coletivo para que não nos sintamos sozinhos, nem nós nem quem morreu. Os velórios são muito importantes. São a demonstração clara de nossa fragilidade e ao mesmo tempo de nossa grandeza.

Fui fazendo brincadeiras tais como o senhor pode ir a pé, é bom que exercita. E ele respondendo que vai fazer isso, apesar de estar com 84 anos e não ter mais condições de andar tão longe. Nós dois rindo do que na vida se nos oferece. E eu lhe falando que, se abusar, suas pernas estão melhores do que a minha. “Afinal, meu sedentarismo perde para o movimento constante do corpo esperto do senhor.”

Conversa vai, conversa vem, e terminei a chamada telefônica feita para ele. O silêncio se instaurou em mim, e me sentei aqui para escrever esta crônica. Imersos nos silêncios, temos sempre o que dizer. Nunca nos calaremos.

E o que dizer aqui? Como explicitar o que se escreve? Já venho dizendo coisas desde o título deste discurso. Venho falando do que acontece todos os dias pelo mundo afora. Morremos. Morre-se.

Antes de tudo, porém, nascemos.

O sobrinho de minha mãe, por exemplo. Minha mãe mesma, antes de tudo. Morreram, mas estão nascendo aqui cada vez que os nomeio. Zezé. Laura. Isso não são apenas dois nomes. Ao escrever essas duas palavras, os seres nomeados voltam a viver. Se pensamos, falamos e escrevemos, não é possível haver o fim de tudo e de todos. O mundo não tem fim.

Bem sei do que é certo. Meu primo dorme agora. Minha mãe deitou-se entre flores no dia 23 de maio de 2022. Estávamos saindo de uma pandemia terrível, e todos nós preocupados com nossos pais, vendo no vírus da Covid-19 os males encarnados, para de repente minha mãe adoecer de outro mal e partir.

O corpo se vai, mas nós permanecemos. Permanecem dona Laura e o Zezé nestas linhas. Sei que permanecem. Por isso o meu amor pela memória, esse processo de reviver, mesmo que de modo diferente, o já vivido. A vida repetida e amada.

Escrever “Laura” e “Zezé” é o mesmo que promover um rito, prestar homenagem, fazer uma cerimônia. Escrever esses nomes é cultivá-los com esmero para florescerem redivivos do fundo do escuro. Escrevendo, somos sacerdotes adorando em êxtase o que não finda: a profunda vida.

Para (não) incomodar

23 de Outubro de 2024, por Evaldo Balbino 0

Nas portas dos quartos de hotel, duas frases numa placa. De um lado: Favor arrumar o quarto. Do outro: Favor não perturbar. Na verdade, são quatro frases, pois um país carece não ser ilha, e mais de uma língua se impõe aos transeuntes das diferentes geografias. Americanizadas, nossas portas de quartos de hotel no Brasil também levam timbre em inglês. Assim, nossos olhos do mesmo modo veem e leem as frases, grafada cada qual num dos lados de outra placa: Please, clean de roon. Please, do not disturb. Português e inglês, diferentes, mas iguais e complementares.

Comumente as encontro, a essas quatro frases. Nunca me acostumo com o tom de fala impositiva delas. Impositiva sim, a despeito das expressões educadas que nelas habitam: favor e please.

Escondido nestas palavras, um desejo de dar ordens num espaço que, não sendo nossa casa, faz-se nosso momentaneamente. Como pedir isto constantemente (arrume, não perturbe, clean, not disturb), se a limpeza constante não se faz necessária?!

Não me atrevo a pedir todo santo dia que camareiros arrumem o aposento em que pouso, sem que haja necessidade. Por acaso limpamos assim nossas próprias casas? Falo aqui dos que não temos empregadas ou empregados domésticos.

Aliás, por falar nessas profissões, vemos em muitas pessoas a mania de dizer “secretária do lar” em vez de “empregada doméstica”. Nessa exagerada preocupação com o “politicamente correto”, acabam por demonstrar, mesmo que sem intenção, um preconceito absurdo. E é justamente no seio desse preconceito é que vemos muitos hóspedes abusando dos serviços dos funcionários que limpam quartos de hotéis, hospedarias, pousadas.

Tenho duas toalhas limpas no quarto, e até agora usei apenas uma, somente uma ou duas vezes: pedir que troquem a toalha usada para quê? Tomei banho apenas uma ou duas vezes no banheiro: limpar o recinto para quê? Se a lixeira do banheiro ou do quarto praticamente não tem quase nada ainda de papel ou qualquer outro lixo, por que é necessário que seja esvaziada se está quase vazia?

Há exagero e abuso quando as nossas mãos apenas dão ordens e nada fazem. Vejo nisso, repito de outra forma, a balda de suserania e vassalagem que atravessa um país já tradicionalmente tomado por sujeições, às quais uns poucos expõem a maioria que, consideram, é subalterna.

Nesse meu afã, entretanto, de não querer explorar ninguém, passei por uma “tragédia” outro dia.

Hospedado num hotel de Aracaju, trabalhando muito e ao mesmo tempo degustando o delicioso e quente litoral sergipano, decidi num dos dias ficar no quarto mesmo. Tomei o café da manhã olhando para a orla, pessoas andando leves sobre a areia. Em seguida voltei para o quarto pensando em trabalhar sob os cuidados de um ar-condicionado amoroso. Deixei dependurada na porta a placa em português (porque sou brasileiro, sim senhor!) com a frase dada à leitura: Favor não perturbar.

Antes da labuta no notebook, tive a necessidade de ir ao banheiro para me entronizar no vaso sanitário e depois tomar um banho. Confiante na placa tão comunicativa e clara, não fechei a porta do banheiro. Eis que, num repente, a porta do quarto se abriu. Vi a sombra de uma pessoa que entrava no aposento.

Pelado como vim ao mundo, levantei-me do vaso, e mais que rapidamente fechei a porta do banheiro com mãos ágeis. Ainda bem que a distância era curta! Do contrário, eu seria flagrado explicitamente na minha nudez, num momento um tanto constrangedor.

“Desculpe, senhor!” – esta era a voz envergonhada da camareira, já dentro do quarto e do lado de fora do banheiro. Envergonhada ela, envergonhado eu.

Não sei exatamente o que os seus olhos viram. Tinha percebido que eu era um homem apenas pelas minhas mãos? Vira mais alguma coisa?

Saiu do quarto repetindo o pedido de desculpa, e isso diante do meu silêncio entronado.

Voltei atônito para o meu trono, e nele fiquei quieto, sobressaltado, com o sentimento de que os perigos dos olhos nos espreitam em momentos tão delicados.

Para não incomodar nenhum funcionário, acabei sendo incomodado, ou melhor, flagrado em cima do vaso. O que deu naquela mulher para não ter lido a placa?

Depois do banho, fui conferir. Lá estava a frase certa rente à porta: Favor não perturbar. Antes eu tivesse colocado em inglês! Assim, talvez, ninguém abriria a porta.

As canções que fizeram pra nós

25 de Setembro de 2024, por Evaldo Balbino 2

“Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão / todo artista tem de ir aonde o povo está.” Essas palavras de Milton Nascimento ecoam em minha memória de amante de música. E o brilho diamantino desse agrupamento de vocábulos me diz do que brilha em nós, estes seres fazedores e consumidores de arte. Cada qual de nós é homo ludens – existência que desde os tempos primitivos se perfaz no jogo instaurado nos diversos ritos e com variadas linguagens. Na canção de Milton, o som de “encharcado” reverbera em “chão”, nossa alma cheia de húmus, daquilo que nos compõe. Essa totalidade espiritual e material me tomou por inteiro no show finíssimo de Caetano Veloso e Maria Bethânia no dia 7 de setembro último. Os dois irmãos chegaram até nós no Estádio do Mineirão lotado de gente e de melodia.

Com alegria e alegria, cantamos todos em acompanhamento aos irmãos, numa plateia irmanada sem a necessidade de lenço e documento, multidão desconhecida se roçando ao resvalar da brisa de uma noite suave e de uma lua leve não inteira, mas completa. No seio de uma Belo Horizonte noturna, passamos a ser doces bárbaros às avessas, porque invadidos de alto astral, lindas canções, afoxés, astronaves, aves – tudo num cordão de vozes em coral de festa.

Era gente brilhando e orando ao tempo. Entre o macho céu e a feminina terra, éramos fêmeas e machos simultaneamente. “E em tudo a voz de minha mãe e a minha voz na dela”. A noite bela e boa doendo em mim a saudade de quando minha mãe, antes de virar estrela, cantava cantadeira. Era a presença renovadora entrando pelos sete buracos da minha cabeça. Uma canção pra ela, minha mãe, mineira e seresteira. E na minha memória a minha mãe, ó minha Nossa Senhora, ó minha Mãe Menininha, virou donzela de novo e de novo se casou, com vestido e véu e flor. “Minha flor no cafezal – era a voz da minha mãe Laura entre as vozes de Bethânia e Caetano. E tudo novamente, novidadeiro e sempre eterno: a lembrança nostálgica plantando semente e raiz. Minha mãe me dando ao mundo, me ensinando deveres e direitos mais do que lavrados. Meu pai me avidando amoroso e rígido, me dizendo da dor do mesmo mundo, do seu vinho desnudo e da sua via dolorosa. O meu povo sofrido e alegre, porque a vida é uma senhora ambígua, a vida é uma festa sem hora.

Apaziguado, porque a arte tem esse poder divino, me senti sendo dois rios correndo irmanados para o mar, escorrendo para o encontro final. A água e eu sendo apenas um, doce ou salgado o nosso corpo, não importa. Eu sendo água afro-brasileira, povo resistente, como resistentes foram meus ancestrais paternos, do lado do meu avô em cujo corpo foram morar indígenas e negros. Todos nós sendo filhos de Gandhi, espíritos e matérias na festa da carne, na manifestação de nossa beleza e de nossa alegria na diversidade. Na festa do nosso corpo e do nosso espírito – uma festa inteira e toda –, a vida ao rés do chão parece um céu de estrelas. E o rio correndo, fluminense ou baiano, mineiro ou paulista – sempre artista na arte de viver.

Ouvindo os irmãos cantadores, revivi Iracema e Carmen Miranda, fiz um movimento mental pelo meu país, o de ontem e o de hoje. Perante mim, os marginalizados sob as botas de generais e pelas cidades atuais, indígenas (virão que eu vi) descendo sobre a vida límpida e passarinha. E a fé, mesmo a abalável fé, se dizendo e se gritando aos quatro ventos: pra quem é forte, pra quem é foda, pra que não foge à luta mesmo não usando clava, pra quem não perde o foco – fé, enfim, pra enfrentar esses filha da puta dominadores.

No dentro das músicas, nossos ouvidos se expandiram para fora, lançando chuva e areia no Saara, jorrando romãs e iaras no recôncavo do Estádio do Mineirão. Sob o céu belo-horizontino, plantamos nossos pés nas arquibancadas e voamos como águias pelo céu amazônico e romano.

Senti profundamente como a vida e a morte também são irmãs. Senti e sinto. Tomando uma cajuína e recebendo rosa pequenina, cada qual de nós sente roçar no frágil corpo a consolação nossa maninha. E assim nos sentimos amparados, nunca sozinhos. Temos amor leãozinho com sua juba de sol, temos a lembrança que não nos deixa esquecer quem amamos, pois nunca aprendemos a esquecer. E a lindeza de quem amamos é sempre mais que demais, tão demais que nos arrebentamos de amor, que os nossos corações explodem, que nossas bocas ainda se sentem molhadas pelos beijos nunca cessados. Na América do Sul ou no Japão, no Polo Norte ou no Polo Sul, amamos em inglês e em braile, em português e em híndi. Entre piscinas, margarinas, Carolinas e gasolinas, nós nos amamos como vacas profanas e suas divinas tetas. Com nossos quereres tão desconexos e conectados, no mundo múltiplo e vertiginoso, respeitamos nossas lágrimas, porém muito mais nossas risadas.

Sabemos que a vida é mesmo assim: ela se faz de lisuras e de dobras, de suavidades e de asperezas. Aprendemos, no entanto. Aprendemos mais de D(eus), pois ele nos habita e cuida de nós. Está sempre conosco aquele que é, foi e vai; que é o tudo e o nada; que é raso, largo e profundo; que é o início, o fim e o meio – eternamente e de novo. Na multiplicidade que nos atordoa, não andamos à toa, e vamos singrando na terra, no fogo, na água e no ar. Mesmo se não estamos em Deus, ele está em nós. No jogo de viver, a arte de sorrir impera com dentes ridentes, ainda que o mundo diga “não”.

Daí a dança da vida. Esta que arranca e pula, que treme e balança, que ginga e que ora, que pulsa e pulsa em sua veia e na qual queremos mais e mais, almejamos barcos e cais, ambicionamos os faróis e seus sinais. Desejamos ouvir e cantar! Ao som de “Odara” a dor se apaga, o nosso corpo se alegra e declara que o mundo pode ser feliz. O nosso corpo sabe que todas essas canções foram feitas pra nós.

Perdoai-nos!

30 de Agosto de 2024, por Evaldo Balbino 0

Tudo pode ter início com o fechar de olhos. Porém até mesmo os olhos abertos não deixam de meditar no sagrado, porque todos os corpos são atravessados por uma luz invisível. Uma luz que se pode escutar, que se pode sentir como se sente o frio que nos arrepia. Essa luz tem corpo, e o frio que nos causa é quente, fazendo ela acenderem-se os pelos, tornando o nosso corpo mais leve. Quase que levitamos. Acontece uma luta entre essa luz e a lei da gravidade. Se não fôssemos deste plano terrestre, se não existíssemos nesta matéria, levitaríamos por certo.

Há os que consideram tudo isso fenômeno psicológico, criação da fantasia de pessoas fanáticas. Pois digo que não é assim. Se há fanatismos, e eu acredito neles, há aquela comunhão tão profunda, que nossos corpos, nossas mentes e nosso espírito – tudo é uma coisa só, existindo para louvar e para desejar o que se louva.

Na igreja, quer cantando hinos, quer ouvindo testemunhos dos feitos sagrados nesta existência miúda e por isso mesmo imensa, quer ainda orando em silêncio ou em voz alta, o fiel em comunhão é um todo sem divisões. O corpo treme, a voz tem prazer, os sentidos são tocados por algo maior e tão carne deste mundo. A alma tem corpo e o corpo tem alma. O prazer e a dor são confundíveis. O torpor se casa com o fascínio e com a exuberância da existência total.

Nos rituais, a mente ao mesmo tempo solícita com as coisas deste mundo e de outro. O coração simultaneamente preocupado e bonançoso. Nos ritos, o risco de Deus nos corpos e o riso da vida arranhando a morte. Essa inscrição rasura o que não aceita a vida, o que quer vê-la na ausência de si mesma.

Assim os cultos. Aqueles momentos em que o gado de Deus se reúne e roça os chifres entre si. Todos os corpos sendo a mesma coisa: ausência almejando presença. E todos, todos na experiência, mesmo que fugaz, da plenitude divina e humana.

Sei que existem sim os ciscos nos olhos de todos, mas isso também nos torna mortais merecedores de toda essa glória.

Um vendo no outro a roupa decotada, como se tal vestimenta fosse pecado. A própria ideia de pecado ela mesma, muitas vezes, um equívoco profundo e de longa data na história humana. Aquele outro, alguém pensa, não é crente de verdade. Fulana não fica com um homem só. Coitado daquele senhor, pois bebe muito e não consegue controlar o vício. Aquela, nem se fala: fica o dia todo falando mal dos outros e agora está aqui dando uma de santa. O seu Plínio, só Deus na vida dele, pois não pode ver rabo de saia que endoidece! Viram o filho da beltrana? Pois ele não vem mais na igreja. A Gertrudes pensa que nos engana com esse ar de beata. Aquele menino chora demais da conta e não deixa ninguém ouvir a pregação. Será que o futebol de amanhã vai dar pé? Ah se eu acertar na loteria! Se eu ganhar, vou dar dinheiro aos pobres como Jó ficou pobre feito eu...

Durante todos os cultos, essa miscelânia de pensamentos e sentimentos. Ora mais, ora menos. Às vezes nada. Ou até mesmo tudo. Nas bocas, os louvores; nas mentes, os lavores interminavelmente humanos e falhos e belos. Existir é mesmo tudo isso, graças a Deus!

Existimos e pensamos, julgamos e somos julgados, desejamos e odiamos, adoramos e perjuramos, somos discretos e opiniosos... É justamente por tudo isso que somos perdoados. Não tem como existir o perdão, se não há o que ser perdoado.

É tão bom ser assim! E saber que sempre podemos encontrar em nós um limite, uma falha, uma aresta que é importante existir. O que faríamos se fôssemos autossuficientes? Pobres de nós! Perderíamos a nós mesmos dentro de nós. Louvado seja Deus por isso!

Dom Baiano e suas duas mulheres

31 de Julho de 2024, por Evaldo Balbino 0

Era nobre o Baiano, superior mesmo. No trato com as pessoas, no modo de andar e conversar. Já idoso na verdade, mas creio que o seu andar lento era um modo de respeito. Falava pausadamente. Com simplicidades, porém sempre nos seus paletós engomados, calça e sapato lustroso. Dentes raros na boca que não se fechava, faladora e alegre. Sempre em movimento no contar casos e rir com vontade para o mundo.

Ele vivia com duas mulheres, uma irmã da outra. As duas com o seu único marido. Uma, quieta, calada, raramente vista por mim e muito fechada em si mesma. A outra, alegre, bonachona, expansiva na fala e nos gestos, o corpo todo forte se balançando. Ambas de idade também avançada. E as duas e o marido avançando pela vida.

Poligamia?! Isso não existe para certos mundos, para pessoas que vivem à margem de leis humanas feitas a esmo delas. Se havia papel passado nesse caso? Por certo não. Talvez houvesse um só matrimônio registrado. O outro, paralelo e consentido: pelo menos era o que se sentia no trato que se via entre os três.

Eu brincava bastante com a esposa comunicativa. Ela ia junto ao marido para fazer compras ali onde eu era caixeiro, atendente, repositor de mercadoria em prateleiras, um pouco contador, carregador de sacos para o depósito, levador de botijões de gás para as casas vizinhas, instalador dos botijões perante os olhos de donas de casa receosos de uma explosão.

O que explodiam mesmo eram as risadas da Aninha, uma das duas esposas do Baiano. Cabelos crespos guardados por um lenço, este arrebanhado na nuca e amarrado num laço firme. Sempre de blusas longas e calças jeans, uma aliança imensa no dedo anular. Seu corpo era feliz por natureza. Um gingado no andar, um bamboleio de olhos e bocas, de gestos e palavras. Aninha andava como se estivesse dançando. Muitas vezes passava sozinha pelo armazém e conversava com este caixeiro que eu era e ria e me fazia rir, e me alegrava o dia e a vida.

O Baiano nunca passou sozinho por mim, mas sempre acompanhado pela Aninha ou pelas duas esposas. Isso, mensalmente, quando, de posse do seu ordenado de aposentadoria, fazia as compras para a casa de três pessoas. Tinham filhos? Não sei dizer. Só sei que as compras eram fartas.

Açúcar para dar e vender, café para bocas sequiosas, sal de dar gosto na comida, banha de porco empacotada aos montes, caixas de fósforo, muito querosene, mortadela, queijo, sabão em pedra, água sanitária, fumo em rolo, pacotes de fumo Sabiá, retroses, pacotes de farinha de trigo, idem para farinha de mandioca e de milho, pães (não se importavam com o fato de que esses pães ficavam murchos no passar dos dias), fubá a granel, goiabada, doce de leite em barra... E a lista seguia desenvolta a encher caixas de papelão, que eram levadasna carroceria de uma caminhão de leite para um dos povoados do município.

A compra de fora do armazém esperava pelo caminhão, e a prosa gostosa e calma dos três. O garnisé tá batendo no galo índio. Qual dos dois deixar no terreiro, se a gente quer as duas raças? As galinhas gostam dos dois: que se entendam! Tem que encher as lamparinas ainda hoje. Amanhã no jirau o queijo vai secar direito se tiver sol. A roupa no varal vai molhar se chover. E assim continuavam as falas para o meu ouvido amante.

Quando o veículo empoeirado chegava e não tinha outro cliente para atender, eu ajudava o motorista a subir com quase tudo. O marido e as mulheres não tinham força para isso.

Em todo esse processo de compra, eu mais gostava mesmo era do ritual que logo de início o Baiano realizava. Chegava-se a mim, enfiava a mão no bolso da calça e de lá tirava umas notas poucas e graúdas: “Moço, troca pra mim tudo em nota da mais miúda?”. E eu trocava.

Com o bolo de dinheiro na mão, ele ia contando cédula por cédula, o polegar e o indicador deslizando com gosto, de vez em quando o dedo indicador indo à boca para pedir ajuda do cuspe na tarefa de separar os papeizinhos coloridos. Os olhos brilhando de contentamento no contato com o bolo imenso dentro das mãos em concha, mesmo que sendo um salário apenas. E como rendia esse salário! Dom Baiano contava as notas não era para conferir se eu tinha dado o dinheiro certo não. Fazia isso por prazer.

E lá iam os três no caminhão. Levando alegria e vida, e deixando também as duas comigo.