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Meu barbeiro

02 de Julho de 2025, por Evaldo Balbino

É por causa do meu engraxate que ando agora em plena desolação. Meu engraxate me deixou.

Mário de Andrade, Os filhos da Candinha

 

Desolação. Palavra bonita acenando pra mim. Uma tristeza profunda. Um sentimento de destruição e ruína, de abandono e isolamento. Meu estado emocional é mesmo de desamparo, mais uma das frustrações que devo carregar.

Tudo isso porque meu barbeiro me deixou. Não que ele tenha mudado de emprego ou tenha se mudado de cidade. Minha saudade na verdade – em qualquer situação – é de tudo aquilo que nunca tive e nunca terei. Não se tem nada na vida. Temos ilusões, e isso, hoje eu sei, não basta.

Mas sem as ilusões não vivemos. Elas são utopias, alucinações, fantasias, miragens, quimeras, delírios, desvarios, alegorias, fábulas, mitos, deslumbramentos, desatinos, insensatezes... Elas, as ilusões nunca perdidas, são símbolos de nossa humanidade.

E o meu barbeiro, humano como eu, me deixou. Logo eu que me achava ser o seu cliente predileto, o seu cliente pra vida inteira!

Como na vida nada é assim, inteiro e pra vida toda, fabulemos!

Antes eu não usava barba. Sempre a tirava com lâmina e afinco, de dois em dois dias, pra ter o rosto liso, e a pele reclamando. Certo dia entrei numa barbearia – a minha primeira vez e eu já homem barbado –, me sentei tímido pra cortar o cabelo e fazer a barba. Pela primeira vez alguém – este meu barbeiro – me disse: “Deixe a barba crescer, barba cerrada! Vai ficar bom. E o cabelo, só jogar pro lado e vai ficar da hora!”.

Obedeci ao meu barbeiro. E desde aí não tomei outra opinião, só aceitando a dele, tão acertada profundamente.

Anos já vêm caminhando, e eu andando pomposo e feliz com a minha barba cerrada – em alguns momentos um pouco maior –, pra agora eu perceber do que já desconfiava. O meu barbeiro sempre foi oblíquo. Um modo palatável de conversar, os gestos amáveis sem conta, o talento delicado e inegável pra cortar cabelo e delinear a barba. Seus dedos aparando pelos e me deixando com/em apuro.

O meu barbeiro não foi embora. Mas me deixou definitivamente. E fui percebendo isso quando, por exemplo, ele faltou ao serviço certas feitas. E eu preocupado se estava cobrando muito, se estava exigindo um trabalho excessivo e sem descanso. Afinal, qualquer um de nós tem direito a evasivas, a sair quando precisa, a fazer outras coisas sem uma rotina única. Não. Eu não queria cobrar muito do meu barbeiro. Mas custava me dizer quando não estaria?!

Sem hora marcada funciona a barbearia. Atendimento pela ordem de chegada. Mesmo assim passei a enviar mensagens pra ele antes de eu ir, pra saber se estava. Algumas vezes não estava, e a urgência me fez ir assim mesmo, passando-me pra outras mãos, pra outros modos de corte de cabelo e de feitura da barba. Somente o meu barbeiro faz a barba do jeito de que gosto. Manias! As sempre manias!

Numa das vezes, lá estava eu fazendo a barba com outro barbeiro na mesma barbearia, um colega seu. O serviço já quase pronto, e ele chegou de umas compras que estava fazendo no Centro da cidade. “Mudei de barbeiro”, eu disse. “Olha que eu sou ciumento!”, ele brincou.

Ora, se fosse mesmo ciúme, não deixaria minha barba de molho em banho-maria! E eu esperando a barba por fazer, o cabelo por cortar... e de repente outras mãos vindo ao meu encontro pra me arrumar pra vida. Assim não fico aprumado.

O meu barbeiro não me entende na minha desolação. Só os que penam isso sabem do que estou falando. Invejo as pessoas que não têm apego. Pelo menos aparentam não ter. Falo das que não se fixam com manicures, garçons, lavadores de carros, cabeleireiros, vendedores, professores... Eu me apego a prisões. Difícil ser descolado, agir somente pelo serviço sem olhar também pra quem o faz. Sou dos que necessitam de grades de afeto. Mesmo que sejam grades tênues, frágeis mesmo – não importa. Mas uma fragilidade desmedida, a ponto de nos mostrar que o outro está longe de nós, aí já é demais pro meu desejo de vida.

Enfim. Não preciso mudar de cidade nem de barbearia. E mesmo assim eu não me encontro e não me acho. Logo voltarei de novo ao meu barbeiro.

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