Prrr-ti-ti-ti! Prrr-ti-ti-ti! Quem conhece roça sabe o que isso significa. Significa que em questão de minutos todas as galinhas vão se juntar freneticamente em volta desse grito em busca dele, o milho. A roça inteira quase não sobreviveria sem o milho, inclusive a gente. A importância dele para nós – e o resto das Américas - é imensurável. E consequentemente preocupante diante de uma questão tão importante quanto ele: o domínio do milho transgênico em relação ao milho tradicional, o crioulo.
O transgênico teve seu embrião modificado em laboratório, recebendo material genético de outro organismo de forma a apresentar determinadas características padronizadas. É um assunto polêmico em nossa sociedade, diante dos seus prós e contras. O lado “favorável” é sustentado pelo fato de que a planta ficaria mais resistente a pragas, aumentando a produtividade. Já o desfavorável - com argumentos bem mais consistentes na minha opinião – é o da perda do equilíbrio necessário da natureza, do meio ambiente e da agricultura familiar. Isso sem contar os indícios de que esses alimentos façam mal à saúde, razão pela qual são proibidos em muitos países do mundo.
Levando a conversa para o fogão, é notório que até nas roças mais primitivas o milho crioulo não tem ido mais para a panela de angu e para o papo da galinha. O milho de laboratório chega a ser tão cruel que, além de impedir que outras espécies de plantas e animais vivam naquele ambiente, ainda invade o milho natural do vizinho com a chamada polinização cruzada. Perde o nosso paladar, perde o meio ambiente, perde o pequeno produtor e perde a natureza, que vai vendo seu trabalho de milhares de anos indo por água abaixo. Explico melhor: a própria natureza cuida de aperfeiçoar as características do milho através da seleção natural daquelas espécies que mais se adaptam ao ambiente. Esse é o milho crioulo, cujas diversas variedades criadas ao longo desses sete mil anos (!) vão se extinguindo diante da tirania dos transgênicos.
O milho é originário da América Central, veio de uma planta chamada teosinto e tem uma importância social e cultural enorme nos países andinos e do centro da América, como no México. Por lá eles costumam dizer que “sin maíz no hai país” (sem milho não existe o país), frase que virou nome de uma forte campanha em defesa do milho crioulo e do pequeno produtor. O programa Globo Rural – um dos melhores da tevê – fez matérias interessantíssimas no México e na Guatemala, retratando os trabalhos de resgate, disseminação e uso das espécies crioulas, principalmente com os pequenos produtores. Com o mínimo de apoio e orientação, conseguiram tornar pequenas lavouras crioulas produtivas e rentáveis, inclusive com o uso da própria tradição milenar. Na Guatemala, mulheres são responsáveis pela separação cuidadosa das sementes, que também são bem conservadas por “guardiões” cadastrados, para que não desapareçam e possam ser sempre usadas. E os benefícios também vão para as panelas, pois a variedade de cores e características propicia uma gama de pratos e preparos diversos, coisa que os milhos híbridos não permitem. Tive o privilégio de observar de perto na Bolívia e no Peru a multiplicidade de milhos e fiquei encantado com o que vi: milho preto, vermelho, branco, roxo e até azul!
Mas infelizmente falta por aqui um mínimo de atenção para esse ingrediente tão importante e do qual dependemos tanto. Já nesses outros países citados existe um respeito muito grande pelo alimento, considerado dos deuses e motivo de muita celebração em agradecimento pela colheita. Por aqui, festa de colheita quase não se vê mais. E nas que ainda existem, na maioria das vezes a maior estrela não é o milho, mas sim um cantor sertanejo, que de sertanejo não tem nada.
(Veja uma receita com vídeo do tradicional e delicioso pastel de milho do sul de minas, parecido com o de angu, só que de preparo mais fácil já que a massa é feita com a farinha de milho: www.casalgastromg.blogspot.com.br)