Desde pequeno sempre fui apaixonado por carro de boi. A infância na fazenda dos bisavós em Moeda e as andanças pelas roças de Resende Costa foram o combustível dessa paixão que só vem aumentando com o tempo. Ao ponto de decidir que a mesa da cozinha da minha casa fosse feita com um carro de boi. Sem as rodas, ele é apoiado com o eixo e tem o cabeçalho fixado na parede, formando uma espécie de bancada. A obra de arte foi feita pelo Sô Geraldo Melo, que com a ajuda dos filhos ainda exerce essa arte milenar aqui em Resende Costa. Com um brilho nos olhos de dar gosto, muito paciente, ele dá detalhes sobre as técnicas de produção, os nomes das peças, os tipos de madeira e faz questão de mostrar com orgulho a fôrma de fazer a “cheda”, herdada do meu tataravô João Gonçalves, com quem aprendeu o ofício ainda novo.
Mas o que o carro de boi tem a ver com gastronomia? Tudo. Além de servir de mesa de cozinha, a gastronomia vai muito além de um prato. Ela engloba tudo aquilo que gira em torno do ato de se alimentar, desde a produção do alimento. E é aí que o carro de boi entra como peça importante nessa cadeia, sobretudo no passado.
Se por um lado a vida moderna trouxe comodidade e facilidade para a alimentação (grande variedade de alimentos e estabelecimentos comerciais), por outro, infelizmente, ela fez com que o povo, e até mesmo muitos chefs de cozinha, se distanciassem do início da cadeia alimentar. Hoje a produção é industrializada e proveniente de grandes produtores, o que evidencia a triste realidade da extinção do pequeno produtor que venderia diretamente o que planta aqui por perto de nossa cidade. E que poderia trazer semanalmente para ser vendido na feira aos sábados, tudo fresco e transportado até mesmo em um carro de boi se fosse preciso, como sempre foi no passado e ainda é em alguns casos isolados.
Falando em passado, o carro de boi teve um papel fundamental na humanidade, sendo muito utilizado desde as civilizações antigas - como a egípcia – e com função elementar na colonização e desenvolvimento do Brasil, não só na construção e transporte, mas também na agronomia. E o melhor: até hoje eles ainda são usados, o que não se imaginaria de uma ferramenta tão antiga. Até em algumas fazendas em que se tem trator a figura dos bois de carro ainda persiste, já que em determinados casos eles são mais eficientes do que o mais moderno trator traçado. Fora isso, ainda entra a tradição e o gosto pela coisa, o que é fantástico e mostra de vez quão especial é essa “máquina viva”. Um japonês que toma uma cachaça mineira lá do outro lado do mundo pode estar consumindo uma bebida de cuja produção o carro de boi participou, já que muitos alambiques ainda fazem uso do boi para o transporte e a moagem da cana. O bagaço, resultado dessa moagem, serve de alimento para o próprio boi. O boi, por sua vez, produz o adubo para a cana e aí o ciclo se completa. Isso é a gastronomia mais perfeita, sustentável.
Quem não teve a oportunidade de ver um carro de boi “funcionando”, carregado de 40 balaios de milho, com várias juntas de bois bem pareados, subindo uma ladeira e cantando alto sem perder o fôlego, talvez não entenda essa paixão que tem sido ressuscitada na nossa cultura. Prova de que tem algo de errado nessa vida moderna que nos tem sido imposta.
Peço licença aqui para agradecer e parabenizar a todos os construtores de carros, carreiros e lavradores que tanto suaram - e suam - a camisa para que comidas gostosas sejam preparadas em nossas cozinhas. Agradeço em especial e aqui faço minha homenagem ao Sô Geraldo Melo, ao vovô João Gonçalves do Ribeirão (meu tataravô paterno) e ao vovô Neca de Moeda (meu bisavô materno), que sempre foi carreiro e tirou o sustento para criar a nossa família com o carro de boi, que até hoje está lá, descansando imponente e vivo debaixo da coberta velha.
(A receita desse mês no blog é uma homenagem aos bois de carro da raça caracu: “Língua de boi ao molho de cerveja caracu, acompanhado de musseline de baroa”. Veja também o que já escrevi sobre carro de boi no JL alguns anos atrás: http://www.casalgastromg.blogspot.com.br/)
Minha mesa é um carro de boi
13 de Novembro de 2012, por Cláudio Ruas