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Resto de geladeira

09 de Abril de 2012, por Cláudio Ruas

Desde criança sempre soube que deixar comida no prato era crime. Jogar alimento fora, seja o que sobrou no prato ou que sobrou na geladeira, é um dos grandes pecados que se pode cometer e minha família sempre soube disso. Aproveitar comida que vai pro lixo, além de lógico e sustentável, muitas vezes ainda culmina com um prato mais rico e saboroso.

Até hoje falam – com a boca cheia d’água – do bolinho caipira que a minha querida e saudosa vovó Trindade do Góes fazia antigamente. Nos tempos de pobreza e uma dúzia de filhos pra criar, ela sempre se virava e acabava fazendo coisa boa, como esse bolinho feito com fubá, ovo, cheiro verde e aparas de osso que ela garimpava na cidade e depois limpava pacientemente. Eu nem era nascido, mas consigo visualizar a cena, a cara do bolinho e sinto até o gosto dele, queimando os beiços, crocante e recém saído da gordura de porco.

Tudo bem que a ocasião faz o ladrão, mas acho que hoje em dia desperdiçamos muito alimento e deixamos de aproveitá-lo de uma melhor forma, graças a sua facilidade e abundância em relação ao passado.

Infinitos são os exemplos de aproveitamento. Então vou tentar falar de alguns, começando pelos clássicos mexidão e farofa, bem brasileiros e “independentes”: quem decide sobre os ingredientes não é o cozinheiro, mas sim, a geladeira, a despensa e o quintal. E é aí que costuma sair coisa boa e surpreendente, como a farofa de resto de chouriço assado com banana caturra e pimenta dedo-de-moça, que o Marcus Monteiro (grandechef, professor e primo) preparou lá na roça no último reveillon. Azar dos porcos que ficariam com os restos.

Os cubinhos de caldo de galinha, carne, peixe e legumes são práticos e muito usados, mas experimente de vez em quando fazer o caldo você mesmo, com as carcaças, aparas, ossos e restos de legumes que tiver. É muito superior e o preparo é simples. Portanto, além de um resultado melhor você ainda economiza e extrai ao máximo aquilo que a natureza te deu, o que geralmente é feito em um restaurante organizado, seja simples ou chique.

Imaginem só o tanto de coisa gostosa que dá pra fazer com o frango ao molho pardo que sobrou do almoço, já desfiando no fundo da panela com aquele caldo encorpado: risoto, macarrão, tortilha, estrogonofe, pastel, bolinho de arroz dormido e por aí vai. Até o angu que sobrou, se ao invés de ir pra gaiola do passarinho for amassado com o garfo e levado ao fogo com leite, manteiga e queijo ralado, fica ótimo.

Os legumes, então, são mestres em serem esquecidos nas geladeiras e nas hortas, mesmo com a facilidade de se fazer uma sopa, um purê, ou um tabuleiro assado com bastante azeite. Assim como as frutas, que viram salada, compota, chutney (geléia) ou suco mesmo. É triste ver uma família na roça gastando dinheiro pra tomar um refrigerante ou um suco artificial enquanto as frutas se perdem nos pomares, pro delírio das maritacas.

Mais um pecado cultural que costumo ver no interior é o aproveitamento das perfumadas ervas como manjericão, hortelã e alecrim somente para chás e garrafadas, e não para temperar carnes, molhos e pratos em geral, se limitando a usar a salsinha e a cebolinha. Entendo perfeitamente os costumes – e gosto deles – mas defendo que na cozinha sempre deve haver espaço pra se experimentar, sobretudo pela ótica do aproveitamento. Basta pensar em como surgiram pratos e misturas que hoje são tradicionais e adorados e ver que alguém criou aquilo, muitas vezes indo contra as regras.

Outro lado positivo de cozinhar com o que se tem é o exercício da criatividade e do improviso, importantíssimos na gastronomia. Tenha sempre uma receita à mão para se orientar, mas procure não ficar muito preso a ela e não tenha medo. Errar na cozinha é normal até para os grandes mestres. E ensina muito.

Por fim, confesso que tem hora que pedir uma pizza pelo telefone é a melhor coisa do mundo, mas temos que ter cuidado com essa comodidade dos dias de hoje, que sai caro tanto pra saúde e pro bolso, como pro paladar e pro bom gosto.
E hoje, tá sobrando o quê na sua geladeira?

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