É uma injustiça esse adjetivo pejorativo que usamos em comparação com esse animal fantástico, que é a cara – e o focinho - da culinária mineira.
O porco é um descendente do javali que foi domesticado na Europa/Ásia 5.000 a.C. (tão antigo como o cão) e chegou ao Brasil com os portugueses. Se cruzarmos javali com porco, nasce um “javaporco”, como faz nosso vizinho Emídio, lá na roça dele. Já o nosso porco do mato (cateto, queixada) é nativo no Brasil, saboroso e bravo pra daná.
Durante o Império Romano, o porco era tão valorizado que existia uma lei que punia severamente quem os furtava. Já os muçulmanos e os judeus ortodoxos até hoje não consomem a sua carne por questões religiosas, por considerá-lo um animal impuro pelos seus hábitos. Mas tirando eles, é difícil ver alguém que não o coma.
Segundo o historiador mineiro João Camillo de Oliveira Torres (avô da Amana Torres, minha mulher): “O suíno, em compensação, é urbano. Todos podem ter (a despeito das posturas municipais) o seu chiqueiro no quintal”. (O homem e a montanha, 1943, Ed. Autêntica). Demanda pouco espaço, é onívoro (come de tudo, até ‘lixo’), sua carne é de fácil preparo e, principalmente, se aproveita tudo dele, até o esterco que vira energia.
Dele tudo se aproveita, do focinho ao rabo que vão para o feijão, o pelo que vira pincel e o pâncreas que produz a insulina contra diabetes. E ainda salva vidas humanas com suas válvulas cardíacas transplantadas, já que sua fisiologia se parece com a nossa.
E o excesso de gordura e colesterol? Mito. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína, atualmente a carne tem 30% menos gordura e 10% menos colesterol do que há 30 anos, graças à evolução genética e nutricional. Tirando os deliciosos e injustiçados miúdos e os porcos caipiras, os cortes magros (lombo, paleta) possuem menos colesterol do que o frango sem pele e menos calorias do que o filé mignon bovino. Outra vantagem em relação ao boi é que a gordura do porco geralmente é separada da carne e pode ser retirada.
Outro mito é o de que sua carne tem que ser muito bem passada, para evitar contaminação. Hoje, com os cuidados sanitários cada vez maiores na criação, esse risco não existe mais como antes. Portanto, não é preciso passá-la demais, deixando-a branca e seca, pois o ponto ideal é com um discreto rosado no seu meio, que expele um pouco de suco quando cortado.
Esse “fuçante” é tão importante que deu nome até pra nossa cachaça, pois esse se refere ao próprio porco (cachaço), cuja carne recebia uma dose da bebida pra tirar a “mardade” e ficar mais macia, técnica excelente e recomendável.
Sinal de fartura na roça, a matança do porco de subsistência é um dia especial e de muito trabalho, que demanda sabedoria na “arrumação”, no cuidado com a barrigada, no enchimento das linguiças e chouriços e na preparação da lata de carne, do inigualável confit de porc, que já foi tema desta coluna.
São tantos cortes, produtos e pratos clássicos da nossa cozinha que usam carne de porco que prefiro gastar esse espaço pra dizer que ela é muito mais versátil do que parece. Substitui muito bem a carne de boi em pratos tradicionais (almôndegas, molho bolonhesa, estrogonofe, língua ao vinho, vaca atolada, ragu) e casa perfeitamente com molhos variados e exóticos, frutas, além de ser barata, nutritiva e cada vez mais usada na cozinha contemporânea.
Porco é sempre bom, mas não me esqueço jamais da melhor experiência que tive com ele, propiciada pelo nosso amigo João do Galo, na ocasião do cinquentenário do doutor Luiz: depois de montar uma estrutura com tijolos, grade e uma tampa por cima, ele assou uma porca de 90kg inteira, no bafo, lentamente (umas 10 horas), com muito carinho e habilidade. Perfeito de sabor e suculência, com todos em volta se servindo daqueles pedaços que desfiavam na mão, pra mim aquilo foi um verdadeiro espetáculo de gastronomia, graças à rusticidade do preparo bem feito, da celebração na roça, do calor humano. Isso, sim, é comida “chique”! Isso, sim, é gastronomia!
Seu porco!
13 de Fevereiro de 2012, por Cláudio Ruas