Chamou a atenção a forma pela qual o poeta, filósofo, ensaísta e crítico literário Antonio Cicero (assim mesmo, sem os devidos acentos gráficos) decidiu morrer, aos 79 anos. O também imortal da Academia Brasileira de Letras (desde 2017) convivia nos últimos anos com o peso de um diagnóstico de Alzheimer, optando agora pelo procedimento de morte assistida em Zurique, Suíça, país onde essa prática é realizada legalmente. Na manhã do dia 23 de outubro último, junto com a notícia de sua morte, foi divulgada uma carta em que Cicero explica sua decisão.
No texto, ele se dirige a pessoas a quem se refere como “queridos amigos”, começando por dizer que se encontra na Suíça, prestes a praticar o que ele chama de eutanásia, afirmando ainda que sua vida se tornou insuportável por estar sofrendo pela doença. E prossegue:
“Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem. Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo (...) A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.” (...)
Diferentemente da eutanásia (palavra de origem grega cujo significado etimológico é “a boa morte”), que consiste em provocar a morte de alguém antes do previsto pela evolução natural da doença, um ato misericordioso devido ao sofrimento intenso provocado por um mal incurável, na morte assistida (ou no suicídio assistido), o caso em questão, o(a) profissional de saúde apenas prescreve a substância letal, mas fica a cargo da pessoa que se submete a essa prática administrá-la em si mesma. Grosso modo, é isso. Esclareça-se ainda que as duas práticas não são permitidas em nossa legislação.
Não cabe aqui qualquer tipo de juízo de valor em relação à difícil atitude de Cicero em decidir, conscientemente, por dar fim à própria vida. E, no caso dele, especificamente, nem cabe a argumentação religiosa segundo a qual se Deus nos dá a vida, somente Ele poderá tirá-la. Na carta de despedida, evocando sua condição de ateu, desde a adolescência, afirma textualmente: “tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo”.
Diante do exposto, é consequente considerar que, ao se despedir deste mundo da maneira como o fez, o irmão e parceiro da cantora Marina Lima deixou não somente poemas, ensaios e letras de músicas, mas também uma discussão ética, médica, filosófica e jurídica sobre temas tão sensíveis e complexos – a morte assistida (ou o suicídio assistido), a eutanásia e suas implicações. E em que pesem tabus morais e religiosos em torno dessas questões, ainda que controverso e/ou por isso mesmo, o debate é sempre necessário.
Deve-se isso hoje a Antonio Cicero Correia Lima, o poeta de Guardar, poema incluído na antologia Os cem melhores poemas brasileiros do século (Editora Objetiva), de 2001, organizado por Ítalo Moriconi: “Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro do que um pássaro sem voos”. É o letrista de O último romântico, sucesso eterno na voz de Lulu Santos: “Me dá um beijo, então / Aperta minha mão / Tolice é viver a vida assim / Sem aventura. / Deixa ser / Pelo coração / Se é loucura então melhor não ter razão”. E de Fullgás, também um hit dos anos 1980, na voz de Marina (irmã): “Meu mundo você é quem faz / Música, letra e dança / Tudo em você é fullgás / Tudo é você é quem lança / Lança mais e mais”. E o autor do que poderia ser seu próprio e antecipado epitáfio: “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade” (final da sua carta de despedida).