É difícil começar um novo ano falando de perdas. É como se, na virada do relógio, no espetáculo de fogos de artifício – mesmo silenciosos – devêssemos ser inundados por uma maré de pensamentos otimistas, felicidade instantânea, esperança renovada. Como se o tempo fosse linear e o passado um baú que fechamos a cada renovação de votos de ano novo. Só que o tempo é circular, ele gira dentro e fora de você e é, no mínimo, um rio cheio de curvas acentuadas. O que ficou ainda está. O que partiu ainda dói.
Ouvi dizer a certa toada da vida que o luto é como um bicho que o rodeia. Se você não o encara, ele o encontra na próxima esquina.
Experienciar o luto pela primeira vez foi como sentir a dor de um parto ao revés. Como fazer nascer dentro de si a memória doída daquela pessoa amada, aquela que agora só existe dentro de você, das suas memórias da voz, dos cheiros, dos sons, dos toques. E, ao mesmo tempo, agarrar esse ente dentro de si com todo vigor para que as mesmas memórias, a voz, os cheiros, sons e toques, não se esvaiam com correr da vida. O Tempo, motor de toda experiência humana, aquele que dá, aquele que tira.
A dor primeira que o invade toma a dimensão de seus nervos, instala-se nos ossos, turva a mente, vira refém do tempo. Com o tempo, nos acostumamos, mesmo sem aceitar, que a ausência é uma presença sentida. Que o silêncio é um som que atormenta. Que o vazio daquela existência preenche seus dias. As datas, as comemorativas, as especiais, os aniversários, o ano novo tomam outra dimensão. Nós nos sentimos compelidos a honrar quem partiu de todas as maneiras possíveis. Mesmo que não os tenhamos honrado como agora queríamos quando estavam aqui.
O luto é uma travessia. Há que se saber atravessar um rio com correnteza, driblando-a, deixando-a levar-se; não adianta lutar contra ela. Você se afunda em seu próprio desespero. Este é o desafio: ver-se impotente diante da correnteza e aceitar que somos impotentes diante do curso da vida, às vezes atribulado, incompreensível, pois suas águas turvas não permitem enxergar o fundo. Assim como não se mede a profundidade da dor de ninguém e como cada um lida com a finitude. É inquantificável. Inqualificável.
Quando perdi meu pai, me dei conta de que a vida não era um sopro, era um susto. De repente, somos compelidos a lidar com aquele monstro que nos espreita, que você sabe que vai ter que encará-lo um dia e, mesmo se por um acaso ou um fato da vida se sinta preparado para esse encontro, ele ainda assim tem o poder de nos assustar. Entendi que o luto pode ser coletivo, compartilhado, repartido o peso e os caminhos para atravessá-lo. Mas aprendi, principalmente, que ninguém tem o direito de desviar você do seu processo emanando promessas de “gostaria de tirar essa dor de você”. Nem sempre poderemos contar com aquela mão que pensávamos ser amiga, mas que pode nos deixar no meio do caminho mais dolorido de nossa vida, fazendo-nos vivenciar outros lutos. Na primeira semana, o mundo parece querer acolher você. Em poucos dias, as pessoas seguem suas vidas e nós, enlutados, permanecemos naquele lugar. Diversas perdas podem ser um luto, seja ele concreto ou simbólico, e lidamos com ele mais do que pensamos lidar.
Se eu puder compartilhar um conselho sobre o luto, na minha desimportância profissional sobre o assunto, apenas pelo ato de partilhar uma vivência, o conselho é: viva-o! Como disse o personagem Visão, na série da Marvel, “Wandavision”, “O que é o luto, se não o amor que perdura?” Cultivemos a saudade mesmo quando queremos sufocá-la. No fundo, citando Ana Fuy, “Viver é constantemente elaborar o luto pelo que a gente pensava que seria a vida.” Podemos ser definidos pelas nossas perdas sem que isso nos limite. Podemos atravessá-las sabendo-se não mais o mesmo de antes. Quanto mais cedo aceitarmos que o luto agora é parte de nossa jornada, menos chance terá esse bicho que nos rodeia de nos atacar quando menos esperamos.