Ideias sobre o fim do mundo rodeiam o imaginário humano, arrisco a dizer, desde que o mundo é mundo. Embora tenha ganhado contornos com o perigoso fundamentalismo religioso, exemplo expresso no encontro caricatural de Baby do Brasil e Ivete Sangalo no Carnaval de Salvador, no qual a primeira prevê o apocalipse em cinco ou dez anos, enquanto a segunda responde acertadamente que se o apocalipse vier, nós “macetaremos o apocalipse”. E o que é o Carnaval senão a celebração da vida vencendo a morte? O Carnaval é o inimigo do fim. E tem sido assim desde que a festa pagã chegou ao território brasileiro e se encontrou com o samba, a antítese da morte, o epíteto da cultura das brechas, das frestas, da periferia.
Desde os primeiros ranchos carnavalescos, que deram origem às escolas de samba, o Carnaval sempre foi um ambiente de tensão entre a ordem civilizatória e a desordem subvertora. Antes dos mestres-salas e porta-bandeiras, capoeiristas iam à frente para disputar entre si ou proteger seu rancho da repressão policial. O Carnaval deixou os grandes salões de pretensão afrancesada e foi feito nas ruas, vindo de terreiros que viraram barracões e escolas onde o samba é fundamento sagrado e profano. O nosso Carnaval brasileiro floresceu em raízes afro-brasileiras, feito pela negritude discriminada, e aventura civilizatória de matrizes africanas contra um projeto de Estado que buscava (e ainda busca) exterminá-la. O historiador Luiz Antônio Simas diz que o Carnaval é o Brasil que deu errado. Deu errado porque subverteu a ideia de civilização ocidentalizada, eurocentrada e patriarcal, e criou uma cultura que permanece sendo antítese, não só da morte, mas do projeto de Brasil. Ele diz também da vitória do coletivo sobre o individual, afinal, é a festa do povo.
Então, se algo é realmente capaz de macetar o apocalipse, esse algo é o Carnaval. Que toma as ruas, as esquinas, os bares, as avenidas. Que faz um enredo de escola de samba esgotar um livro nas livrarias, o caso da Portela com o enredo “Um Defeito de Cor”, inspirado no romance de mesmo nome de Ana Maria Gonçalves, leitura obrigatória para compreender o Brasil profundo. O Brasil que construiu o Brasil. Que faz o manifesto dos delegados e da bancada da bala se mover para punir a Vai Vai por representar em seu desfile a violência policial contra corpos negros, estatística e empiricamente embasada.
O Carnaval é onde nos despimos da fantasia que nos acompanha todo o resto do ano e celebramos a liberdade, a imaginação, o encantamento com a vida. Não há apocalipse certo para quem alimenta a folia. E se ele vier, vai encontrar uma força que resiste no chão, no fundamento, na rua. A dança dos corpos que viram tambores maestrando suas baterias. A força da palavra dos cantores das escolas de samba que dizem, antes de abrir o desfile, “Que Exu nos guie e que Deus nos proteja.” Afinal, Carnaval é vida e tudo que é vida é Carnaval.