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A contemplativa ação da poesia

13 de Novembro de 2014, por Evaldo Balbino

A poesia requer uma contemplação inteligente, um sentido apurado das palavras e do poder que elas têm no mundo. Assim, como crítico e como poeta, estabeleço um tipo de namoro com as palavras. Um namoro cheio de estranhamentos. Pois a linguagem poética também pode adquirir essa função de choque. É quando você tem de parar de ver as palavras em seu sentido diário e comunicativo para, num ato amoroso com elas, debruçar-se sobre seus corpos verbais e ver neles outras possibilidades, outros usos, outros sentidos.

A poesia, como sempre, é o que me tira do sufoco da vida contemporânea, me ensinando, inclusive, a encarar mais esse sufoco. Devemos ler poemas sem pressa. Cada poema merece nossa atenção. Só compreendemos a poesia se mergulhamos nela, se sentimos cada palavra falando conosco. Um poema deve ser lido com amor, com vagar, num ato lento e demorado.

Digo a todos os poetas, àqueles que escrevem por necessidade psíquica e espiritual, que persistam na escrita e na publicação dela. Escrever literatura, escrever poesia, é remar contra a corrente, mas é remando que vamos ganhando força e maturidade. Porque escrever é conhecer-se e conhecer os outros. Camões já lamentava sobre a surdez do mundo para com a poesia, mas não deixou de poetar por isso.

Também digo a todos os que leem poesia, que vale a pena fazer isso. Lendo, não passamos a vida à toa, como nos disse certa vez Manuel Bandeira. Quando terminei meu curso de Letras, ganhei da minha ex-professora Regina Coelho uma terna e rica lembrança: as poesias completas de Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. Um título assim, tão alto, só pode é fazer brilhar nossa vida. Brilhar como brilhou a poesia desse maravilhoso franciscano nas letras brasileiras. De uma capa azul a ponto de dar paz, o volume que ganhei da minha ex-professora traz o belo título encimado pelo nome do autor. E mais acima, no topo mesmo da capa da brochura, uma grande estrela, num brilho opaco, mas imenso, iluminando todo o livro e a minha vida. Transcrevo aqui o que me escreveu em dedicatória a minha mestra: “‘Passei a vida à toa, à toa...’. Bandeira que nos perdoe, mas sentir a poesia é passar pela vida plenamente, não é mesmo, Evaldo? A você uma lembrança de quem muito lhe quer bem”.

Passar pela poesia não é ato vão. Passando por ela, fugimos dos vãos da existência. Caminhamos de braços abertos, e não cruzados. Abertos como os de Cristo em seu sangue derramando, abertos para que a vida aconteça com plenitude, a ponto de vencer a própria morte.

Contemplar não é ficar parado. Contemplar é amar com ação, pois queremos o movimento puro. Cantar TE-DEUM nos faz um gado no alto da colina, mais próximos das nuvens, voando com elas. Ficamos mais próximos de Deus, andando sobre montanhas.

Contemplar, pela poesia, é ver Santa Teresa d’Ávila sendo perfurada por um anjo em forma corporal, seta de fogo devassando-lhe as entranhas amorosas. Contemplar é ver Teresa em sua alcova escrevendo enquanto uma luz desce sobre sua cabeça, seu corpo levitando de palavras, e as sinuosas e barrocas linhas se compondo. Contemplar é também ver Teresa, já envelhecendo, no entanto firme no propósito de fazer aquilo que só homens faziam. Sobre muares, atravessando a Espanha, cortando o frio das madrugadas, batendo palma para Deus e para Cristo, fundando conventos e os administrando.

Contemplar é ser Marta e Maria. É poético ler isto, em São Lucas: “E aconteceu que, indo eles de caminho, entrou Jesus numa aldeia; e certa mulher, por nome Marta, o recebeu em sua casa; E tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual, assentando-se também aos pés de Jesus, ouvia a sua palavra. Marta, porém, andava distraída em muitos serviços; e, aproximando-se, disse: Senhor, não se te dá de que minha irmã me deixe servir só? Dize-lhe pois que me ajude. E respondendo Jesus, disse-lhe: Marta, Marta, estás ansiosa e afadigada com muitas coisas, mas uma só é necessária; E Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada”.

 

Mas também é poético ver obras acontecendo, ver as mãos se movimentando, não apenas em louvor num altar. Amo as mãos em movimento para a vida, antes que venham a parar definitivamente, colocadas sobre um peito frio e dormidas. E as amarei depois também, lá nos sítios onde se esconderem e onde ficarão brancas, magras, porém levando consigo memórias dos gestos que fizeram, das sensações de outras mãos que seguraram e lhes ficaram na memória digital da existência.

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