A arte não é apenas o espelho da vida, mas também uma forma de transcendê-la. Ney Latorraca (1944 – 2024), um dos mais emblemáticos atores do Brasil, compreendeu essa dimensão ao longo de sua prolífica carreira. Com sua morte aos 80 anos, em 26 de dezembro de 2024, no Rio de Janeiro, vítima de sepse pulmonar, encerrou-se uma trajetória marcada por talento, humor refinado e, acima de tudo, um compromisso ético com o mundo. Ney não foi apenas um intérprete genial; foi também um homem profundamente reflexivo, cuja filosofia de vida se traduziu tanto na sua arte quanto em seus gestos.
O humor de Ney tinha raízes na observação crítica da condição humana, mostrando como o riso pode ser uma forma de pensar e sentir o mundo. Ele não se contentava com superficialidades: sua inteligência era marcada por um profundo interesse pela filosofia e pela cultura. Por meio de suas atuações, Ney oferecia ao público não apenas entretenimento, como também um convite à reflexão sobre as contradições e absurdos da existência humana.
Porém, o maior testemunho do caráter de Ney talvez não esteja apenas em sua obra, mas em seu testamento. A doação de seus quatro apartamentos para instituições beneficentes - a ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação), o Retiro dos Artistas, o Grupo de Apoio às Crianças com AIDS (de Santos/SP) e um grupo dedicado às vítimas da hanseníase - é um gesto que transcende o individual e aponta para o bem comum. Ney não apenas atuou nos palcos da vida; ele os transformou em um espaço de solidariedade e cuidado.
Durante a pandemia, em uma entrevista à Veja Rio, Ney afirmou: “Está tudo no meu testamento. Fiz questão.” Essa frase é reveladora de sua visão de mundo: um artista que entendia que a responsabilidade não termina com o aplauso. Ney legou, assim, não somente bens materiais, mas ainda exemplo raro de coerência entre discurso e prática, entre arte e vida.
A generosidade de Ney é também uma forma de resistência. Em um mundo muitas vezes marcado pelo egoísmo e pela indiferença, sua escolha de apoiar instituições que cuidam dos vulneráveis reafirma o papel do artista como agente de transformação social. Em vida, Ney deu voz aos marginalizados por meio de sua arte. Em morte, deixou uma contribuição que reverberará nas vidas que ajudou a transformar.
Que sua memória seja um convite à reflexão sobre como podemos, em nossas respectivas esferas, unir talento, consciência e solidariedade. Ney Latorraca nos deixou, mas permanece como um farol, lembrando-nos de que a arte - e a vida - têm sentido quando colocadas a serviço do outro.
*Filósofo, membro da Academia de Letras de São João del-Rei.