O mundo encantado que Hans Christian Andersen criou


Artigo

Ivan Alves Filho*0

fotoHans Christian Andersen (foto internet-divulgação)

Sua infância esteve longe de ter se desenrolado como um conto de fadas. Perdeu o pai aos 11 anos de idade e sua irmã acabou se prostituindo em um bordel administrado pela própria tia. Talvez tenha sido justamente por esse motivo que ele se dedicou, na fase adulta da sua existência e até de forma inconsciente, a sonhar com um mundo melhor para as crianças. Para todas as crianças do mundo – e para a criança que talvez ele mesmo tenha lutado para nunca deixar de ser, apesar das adversidades que enfrentou ao longo da existência.   

Mas que havia também uma certa dureza em seus escritos, lá isso havia.

Estamos nos referindo ao escritor dinamarquês Hans Christian Andersen. Filho de pais muito pobres (um sapateiro e uma lavadeira), Andersen sentia na pele a discriminação social. Mesmo assim, lutou para se destacar na vida. E o fez com as armas que lhe convinham, ou seja, o papel e a pluma. A imaginação – tão fantasiosa que chegamos a nos perguntar se deixou de se sentir criança um dia – faria o resto. Andersen mergulhou, tal qual Giotto, Amadeus Mozart, Béla Bartók, Villa-Lobos e outros grandes artistas, no manancial inesgotável da cultura popular, valendo-se de lendas e mitos. Tudo escrito em linguagem corriqueira, do cotidiano.

Nascido no interior da Dinamarca, mais exatamente na cidade de Odense, em 1805, Andersen emigrou para Copenhagen aos 14 anos de idade. Ele começou a vida cantando em um coro para meninos e, depois, passou a escrever peças para teatro. Aos 17 anos, recebeu apoio do Teatro Real da capital dinamarquesa e percorreu quatro países europeus (Alemanha, Itália, França e Suíça) para adquirir conhecimento e bagagem cultural. Jonas Collin, diretor do estabelecimento, percebeu rapidamente que estava diante de alguém pouco comum e de muito futuro nas letras. Acertou. Não por acaso, Andersen começaria a se destacar na literatura com um recito de suas viagens pela Europa. Bem mais tarde, isto é, em 1866, chegaria, inclusive, a publicar um livro sobre suas andanças em Portugal, intitulado “Uma visita em Portugal”. Essa viagem, que duraria cerca de três meses, atendia a um convite feito por um amigo de juventude, o diplomata português Jorge ONeill.  

Seu trabalho, mesmo o de ficção, nunca perderia um certo sentido autobiográfico. E é preciso lembrar que Hans Christian Andersen redigiu nada mais nada menos que três autobiografias. Em uma delas, descrevendo a casa humilde onde nascera, recordava que, “perto da janela, havia uma estante cheia de livros e de poemas”. 

Aqui, uma confidência: talvez o conto “A menina dos fósforos” tenha sido o texto que mais me emocionou em matéria de literatura de ficção em toda a vida. Coloco-o, pela beleza e sopro humanista, ao lado de contos estampados em obras como “Decamerão”, de Giovanni Boccaccio, e “Bola de sebo”, de Guy de Maupassant. Com efeito, não dá para ficar indiferente à história da menina que, na noite de Natal, apresenta suas caixinhas de fósforos às pessoas que passam pelas ruas. Até que a noite cai e o frio aumenta. A menina, então, passa a riscar seus fósforos para se aquecer. Mas o estoque termina e o frio aumenta cada vez mais, congelando-a. Andersen denunciava no conto uma das maiores mazelas da Europa do seu tempo, ou seja, o abandono das crianças pela sociedade. Submetidas a trabalhos como esse que conduziria a menina à morte, elas eram as grandes vítimas da péssima distribuição da renda nos países escandinavos durante o século XIX. Qualquer semelhança com os tempos de hoje em outras plagas não é mera coincidência.

Devemos todos nós a Andersen contos maravilhosos, como “O soldadinho de chumbo”, “O patinho feio” e “A roupa nova do imperador”. O escritor pôs em cena tudo e todos: reis, rainhas, certamente, mas também humildes lavadeiras (a própria mãe?); plantas e árvores; bichos, tudo em uma quase alegoria ou hino à diversidade da vida. Lendo-o percebemos o valor desta frase do físico alemão Albert Einstein, que uma vez a pintora Aparecida Azedo reproduziu para mim: “a imaginação é mais importante do que o conhecimento”. 

Andersen escreveu no total 170 contos, ao que me consta. Todos marcados por uma narrativa pungente, que só nos faz crescer enquanto pessoas sensíveis. O escritor faleceria em 1875. Hoje, sua obra está publicada em mais de 120 idiomas.

Hans Christian Andersen criou um mundo encantado. E depois encantou o mundo.

 

 

*Historiador, membro da Academia de Letras de São João del-Rei.

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