De um ponto de vista

Dois livros

17 de Marco de 2021, por João Bosco Teixeira 0

Li bastante, em 2020, até devido à quarentena. Foram leituras ricas. Duas delas, entretanto, considero terem sido as mais importantes e proveitosas.

Primeira delas, de Rosamund Bartlett, TOLSTOI, A Biografia. O subtítulo já diz tudo: uma biografia completa, inapelável, que deixa qualquer um satisfeito pela sua completitude.Pela obra, sabe-se por qual razão Tolstoi tornou-se um modelo arquetípico de seu país.  É que, além de compor com Dostoiévski e Tchekhov a extraordinária tríade de escritores russos, Tolstoi desempenhou papel relevante na política e na vida social de seu tempo. Dedicou-se à educação, como poucos, a ponto de desenvolver metodologia especial para o aprendizado do conhecimento, levando as pessoas a se posicionarem adultamente frente à realidade. Tudo a lhe custar o ódio do Governo. Tolstoi, uma leitura muito proveitosa, nas suas seiscentas páginas, em que palpita a rica e complexa Rússia.

O segundo livro que me prendeu foi A HUMANIDADE DE JESUS, do espanhol José M. Castillo. Do autor já conhecia A humanização de Deus, obra portentosa de mais de quinhentas páginas. Esta agora, nas suas pouco mais de cem páginas, convincentes, enraizadas nos Evangelhos, tornou-se para mim obra de necessária referência.

O autor lembra que o termo humano vem do latim humus, terra. Daí a conexão do humano com o que é literalmente próprio do mais baixo, do que é terra, do que está agarrado ao solo. E, portanto, oposto a tudo aquilo que significa grandeza, poder, honra. Foi o que Jesus viveu. É o que ele é. Falar da humanidade Jesus equivale a falar de sua condição terrena, de seu jeito de viver, radicalmente humano.

O livro vai demonstrando, pouco a pouco, a integridade e a grandeza da humanidade de Jesus, baseando-se o autor nas numerosas referências ao Evangelho. Uma demonstração contundente, porque evidente. E causadora de consequência: para muitos cristãos, crer na divindade de Jesus é mais fácil que acreditar em sua humanidade. Sem esta, não existe aquela. Esta nos aproxima dele. A outra nos afasta, pois o que somos é humanos. E como tal, apenas o que é humano é que pode ser objeto de nosso conhecimento e de nosso existir. O divino só nos é dado imaginar. Se achamos que conhecemos algo que é divino, é porque divino não é.

O livro de Castillo, que é doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, é um monumento. Monumento é algo que celebra. E a “Humanidade de Jesus” celebra. Celebra a vida. Celebra a verdade que de nós humanos nada mais se pede que sejamos humanos. De nós nada mais se espera que sejamos humanos. De nós nada mais conta senão nossa humanidade. O livro celebra a plenitude da humanidade que Jesus de Nazaré vivenciou. Até na morte humilhante.

A grandeza – e o esquecimento – da humanidade de Jesus leva Castillo a dizer que vivemos muito mais a “religião” que o Evangelho. Somos mais “religião” que Evangelho. Empobrecidamente.

Sete Pecados Capitais

18 de Fevereiro de 2021, por João Bosco Teixeira 0

Numa manhã de sábado de janeiro, participei de um programa de rádio, com duas horas de duração, em que se falava sobre os SETE PECADOS CAPITAIS. Além do coordenador do programa, éramos três expositores: um psicanalista, um jornalista-radialista-influenciador digital e eu. Dada a diversidade de formação dos participantes, os vários enfoques emprestados ao assunto enriqueceram a informação. Não se tratou de um debate. Tratava-se, muito mais, de gerar informação sobre a matéria e elucidar os vários conceitos.

Desde minha primeira intervenção me posicionei contrário à ideia de pecado. É que pecado, gerador de culpa, é assunto restrito a cristãos católicos. E a soberba/vaidade, a avareza, a inveja, a ira, a luxúria, a gula e a preguiça são temas, são matéria comum a qualquer pessoa. Qualquer um, no seu dia a dia, pode ter nessas manifestações de personalidade, comportamentos indevidos, atitudes condenáveis, pelo excesso. Excesso gerador de desequilíbrio na personalidade. Isso, porém, nada tem a ver com o pecado incluído na doutrina cristã. É que o pecado, por sua definição, exige o pleno conhecimento de ofensa que se faz a Deus e a total liberdade de fazê-la: eu sei o que estou fazendo e quero fazê-lo. A instrução latina dizia: sciens et volens (sabendo e querendo). Convenhamos: além de não ser fácil pecar, querer transformar em pecado características, traços de personalidade, é um despropósito.

Além do mais, quis me opor à ideia de pecado porque em nenhuma de tais manifestações de comportamento aparece a ideia, o enfoque social. E se algum pecado hoje cometemos, é o pecado de omissão diante de tantos problemas vitais. Não por nada, o grande teólogo Ratzinger, emérito da Cátedra de Pedro, disse que os pecados capitais hodiernos são: a pressa, a manipulação genética, a interferência no meio ambiente, o causar a pobreza, a muita riqueza, as drogas e a injustiça social. Quer se concorde quer não com essa lista do bispo emérito de Roma, há nela um claro viés social, como convém.

O diálogo longo com os colegas do programa foi muito proveitoso, sobretudo porque deixou clara a noção de excesso, o que, sem dúvida, deve ou pode ser evitado, sob qualquer ponto de vista.

De minha parte, solicitada uma palavra final, não pude deixar de dizer: erro hoje, não falei pecado, é a desumanização. Essa atitude, sim, é causadora de males perniciosos, ofensivos à humanidade, indignos dos que se dizem seguidores de Jesus de Nazaré.

E veio-me, espontaneamente, a lembrança de Guimarães Rosa: Existe é homem humano: Travessia.

Assim é que nos convém caminhar.

                  

NOTA - O Catecismo da Igreja Católica, editado depois do Vaticano II, na edição das Vozes, de 1993, de setecentas páginas, dedica seis páginas ao tema do pecado. E em tais páginas, três linhas para falar sobre o que são os pecados capitais, sua origem e quais são eles. Muito significativo. Faz muito sentido.

CUIDADO

20 de Janeiro de 2021, por João Bosco Teixeira 0

Um programa de televisão indagou de certo número de pessoas qual a palavra que melhor sintetizava o que a população viveu em 2020.

Houve uma série de respostas, como se pode imaginar. Ao final, concluiu-se pela palavra CUIDADO, que superou outras igualmente significativas, quais “generosidade”, “responsabilidade”, “solidariedade”.

Houvesse eu sido indagado, também teria dito a palavra CUIDADO. Do latim arcaico coitare, significa pensar em, pensar sobre. Dar atenção à saúde. Uma palavra síntese, portanto, de tudo quanto se fez em dois mil e vinte, face à Covid-19. De fato, além do CUIDADO notável por parte dos profissionais da saúde, parte notável da população esteve, direta ou indiretamente, transitória ou permanentemente, envolvida, preocupada no dispensar CUIDADO às pessoas, contaminadas ou não pelo vírus destruidor de vidas, aniquilador do bem-estar social e limitador das manifestações de carinho e afeto.

CUIDAR é dimensão essencial da vida. É no dispensar cuidado que as pessoas tomam consciência dos limites da vida, na fragilidade da existência e, por conseguinte, se supera a arrogância, incompatível com qualquer postura humana. Mas é também pelo CUIDADO que se alcançam e se conhecem os valores da existência. Pelo CUIDADO é que se chega ao outro, que se acolhe o outro na realidade que o envolve. Pelo CUIDADO é que se pode chegar a uma forma de situar-se no mundo, com a delicadeza espiritual expressa na empatia e no sentimento de admiração. Sem o CUIDADO, nada de humana interação. Pobreza de vida.

Além do mais, o CUIDADO, a atenção dispensada ao outro, o preocupar-se com o outro traz consigo um outro fator de importância capital para a vida saudável das pessoas.  Quem se sente CUIDADO, sente-se RECONHECIDO. Que riqueza de atitude: prestar reconhecimento ao outro. Que pobreza de atitude: não prestar reconhecimento ao outro na sua peculiar característica. Sem o CUIDADO não há reconhecimento. E sem reconhecimento ninguém é gente, ninguém é nada, a pessoa não existe. Se numa pessoa nada se vê, nada se reconhece, é o mesmo que dizer da sua inexistência. Pois bem, é o CUIDADO que leva alguém a reconhecer o outro. E como cuidar é também dar atenção à saúde, quando se cuida se está dando atenção à vida. Nada mais essencial.

O grande biólogo chileno – Maturana – escreveu em um de seus livros: Sustentei muitas vezes que, se não todas, a maior parte das doenças que nós seres humanos contraímos, têm sua origem no desamor e, igualmente, se curam pelo amor no amar. Ora, expressão maior do amor é o CUIDADO.

Dois mil e vinte e um chegou. Vamos festejá-lo. E levá-lo com CUIDADO, pois festejar é partilhar, é ter com quem se encontrar, é reconhecer que outros, além de nós, fazem jus à festa em que, mais que qualquer coisa, é preciso ter CUIDADO, pensar no outro como possuidor do direito a uma vida reconhecida.

“São filhos de Deus”

13 de Dezembro de 2020, por João Bosco Teixeira 0

Quando os jornais noticiaram que o Papa Francisco reconheceu que “homossexuais têm o direito de estar em uma família”, muitos jornalistas fizeram questão de dizer que o tema divide a Igreja Católica. 

Francisco, ao dizer que tais pessoas também “São filhos de Deus”, não faz outra coisa senão proclamar sua fidelidade ao Evangelho de Jesus, seu compromisso com o reino de Deus, que é reino de justiça e justiça é dar a cada um o que é seu.

Essa é uma questão em que não é possível tergiversar. Quando Jesus, diante da prostituta, proclama “quem não tiver pecado atire a primeira pedra”, tudo ficou definido: agora há uma nova lei, háum novo parâmetro de vida. A antiga lei mandava apedrejar aquela mulher. A nova lei declara a superioridade do pecador sobre o pecado. Ficou estabelecido, para sempre, que não há atitude alguma que possa superar a dignidade da pessoa. Além disso, naquele momento Jesus condena, com toda clareza, a hipocrisia dos observantes da lei em prejuízo do espírito da lei.

A religião católica, como instituição, tem suas normas, suas regras. Por isso é que o Papa não fala em casamento de homossexuais. Ele fala de família:“Não se pode expulsar ninguém de uma família”. Ora, família não é uma instituição religiosa, portanto não está sujeita a normas institucionais desse tipo.

Francisco fala de coisas que interessam às pessoas de boa vontade, àquelas pessoas dispostas a sair de seu espaço cômodo e ir ao encontro da vida borbulhante, da vida que fervilha, cheia de contratempos e de desencantos, e que, mesmo assim,é vida, ou, sobretudo assim, é vida. Francisco convida os cristãos a abandonarem o constituído para irem em busca do constituinte, daquilo que qualifica, identifica, justifica uma vida de fé. Sabe-se quanto é mais fácil desconsiderar as interrogações da vida que enfrentar seus questionamentos. Quanto é mais fácil crer que amar, contemplar que fazer, embora para se amar seja preciso crer, para se fazer seja preciso contemplar.

Os amantes da lei pela lei se incomodam com as atitudes de Francisco, se escandalizam. Exatamente como aqueles que, ouvindo Jesus recomendar a superação da lei a favor dos homens, no tocante, por exemplo,à observância do sábado, escutaram do mesmo Jesus: “Bem-aventurado aquele que não ficar escandalizado por causa de mim” (Mt 11,6).Mas Jesus é o Evangelho, não é a Igreja.

Francisco escandaliza? Francisco divide a Igreja?

Não. Quem escandaliza, quem divide a Igreja Católica não é a posição do Papa sobre este ou aquele tema. Quem escandaliza, quem divide é o próprio Evangelho. É a sua observância. É a fidelidade a ele.

Se Igreja e cristãos estão se sentindo divididos pelas palavras de Francisco, convém que ambos se perguntem se não é o Evangelho que os está dividindo.  A Igreja pode ser dividida. O Evangelho, não.

Inteligência espiritual

18 de Novembro de 2020, por João Bosco Teixeira 0

Uma grande amiga tomou conhecimento do livro “Inteligência Espiritual”, da doutora Dana Zohar, da Universidade de Oxford. O livro trata da matéria contida no título. E a amiga indagava: Que acha?

Respondi-lhe: “Você quer me colocar numa ‘sinuca de bico’ com essa questão? Em todo caso, não vou deixar de dar minha opinião.”

Nós sempre entendemos por inteligência aquela “aptidão para compreender as relações que existem entre os elementos de uma situação e a ela se adaptar a fim de realizar seus próprios fins”.  Durante muito tempo, tal concepção era única e suficiente. A partir da primeira metade do século passado, Thordinke (falecido em 1949) já falava de três inteligências: a inteligência abstrata ou conceitual, a inteligência prática e a inteligência social. No final do século, ou um pouco antes, passou-se a falar de inteligência emocional.

Muitos físicos falam de muitas inteligências. Mas, não sei bem que conceito de inteligência adotar em tais casos. É certo que a “aptidão para compreender as relações” é muito diversificada em um engenheiro, em um artista, em um marceneiro ou em um médico.Como, porém, é isso neuro-fisiologicamente? Haverá partes distintas no cérebro para cada uma das inteligências?

Por isso, minha opinião é assim: não há dúvida de que não existe ninguém puramente inteligência, puramente emoção, puramente “espírito”. Somos, constituímos uma belíssima e extraordinária unidade, continuamente sujeita a mil condicionamentos que nos levam a viver dessa ou daquela forma, a emitir os mais variados comportamentos.  Hoje, esse movimento expresso no livro citado pela amiga toma fôlego. O próprio brasileiro Marcelo Gleiser, físico de renome, vem dando notável contribuição a essa nova preocupação da física, tendo ganho, em março de 2019, um prêmio considerado “O Nobel da Espiritualidade”. Na semana passada, ele participou de um encontro sobre espiritualidade, que ele define como “uma conexão com algo maior do que somos que inspira crescimento e humildade”.

 O que sinto nesta hora (talvez isso seja inteligência emocional) é que a humanidade não anda se aguentando, sustentada apenas sobre os próprios pés. É muita coisa, muita coisa mesmo, que está fora dos trilhos. Se não conseguirmos enxergar além dos nossos passos, se não conseguirmos imprimir aos nossos passos olhares mais longínquos, “sobre algo maior do que somos”,acho que chegará um momento em que a loucura, ou o desespero, será a saída. E isso é muito triste.

Então, que venham os físicos nos ajudar. Tenho profunda convicção sobre a dimensão espiritual do ser humano. Mas não sei se isso é inteligência espiritual. Sei, sim, que se pode até “perder-se no espírito”. E, à luz dele, estabelecer relações fortes, capazes de alimentar, iluminar e até transformar vidas.

À amiga, médica patologista e cantora lírica, casada com um médico doutor em doenças infecciosas, eu não duvidei em dizer que existe, sim, uma inteligência espiritual. Afinal, neles, na vida deles, vibra o transcendente, feito de dedicação à ciência da vida, à arte e a tanta coisa mais que “entusiasma”, palavra que no grego significa “dentro de deus”.