Voltar a todos os posts

Lava-me agora!

21 de Maio de 2024, por Evaldo Balbino

Chove torrencialmente agora em Belo Horizonte. Isso poderia ser o início de uma clássica e tradicional redação. Poderia ser até mesmo uma escrita piegas. Até hoje, porém, ninguém me demonstrou racionalmente quais sãos as características do que se considera piegas ou brega.

Isto aqui poderia ser protocolar composição de escola, mas não é. Chove de fato, como de fato estou aqui escrevendo escondido da chuva. Não que eu tenha que esconder dela que escrevo e que a escrita me é necessária desde sempre. Aliás, não preciso esconder nada da chuva. Ela simplesmente cai, geralmente de modo oblíquo, porque nesta vida as linhas retas são ilusões.

A chuva cai enquanto escrevo estas linhas. Foi ela quem, ao começar a cair, me pediu para escrever. Falei há pouco que ela simplesmente cai. Contudo, sou um sujeito anímico. Entendam bem: anímico e não anêmico. O meu sangue vai bem, graças a Deus! Não é azul. É mesmo vermelho igual ao de todo mundo. De fidalguias e pedigrees não temos nada. Somos meros humanos na existência. E detalhe: debaixo desta chuva ou longe dela, somos uma espécie entre espécies. E mesmo assim quase todos nós nos arvoramos em antropocentristas inevitáveis. Coitados de nós!

Meu estado anímico, ou melhor, meu ser anímico, me faz conversar com a chuva, com esta chuva e com todas as outras. E é com ela que falo, e com você também que agora, neste exato momento, me está lendo. Seja dia, seja noite; esteja frio, esteja quente; faça chuva ou faça sol – não importa. Fato é que escrevo, que escrevemos e lemos.

Há quase quarenta anos – e os desertos se estendem –, compus um dos meus primeiros poemas (ensaios de poesia). E era justamente sobre a chuva que falava esse texto. Não exatamente sobre ela, mas sim sobre uma conversa com ela. Lembro que eu lavrava um diálogo com as águas insensíveis caindo no telhado e dizia enfaticamente: “Vem, chuva! / Vem lavar sem sabão / a minha existência!”. Péssima imagem essa! Mas paciência, pois foi o que escrevi. Graças a Deus que este poema não se concretizou, graças a Deus que ele se perdeu ao longo da minha vida e nunca encontrou lugar em nenhum livro meu!

A despeito de horrível, esteticamente falando, a imagem feita pelo jovem recém-saído da adolescência não era vazia. Tinha lá o seu sentido. O meu desejo era o de me lavar nas águas da chuva, o de tomar banho da água do céu. Não o céu espiritual, mas essa atmosfera acima de mim, tão suja quanto este mundo ou quase. O que eu queria eram as águas que subiram, que ganharam forma e densidade e que naquele momento estavam caindo sobre o telhado da minha casa. Em suma, o que eu queria eram as águas que tinham viajado pelos ares, as águas voadoras. Aquele banho, se concretizado, me daria mais leveza, sem necessidade alguma de interferência química das mãos humanas. Eu queria a chuva, simplesmente ela.

Eu a queria como agora te quero, chuva! Mas agora quero mais fortemente. Te quero do mesmo modo como te vejo pela janela chocando-te com o vidro. Te quero da mesma maneira como te escuto, meus ouvidos abertos ao teu ruído, meus sentidos atentos aos gemidos do vidro e de parte da cidade molhada. Sei que muitos não têm um abrigo, um teto – e isso me machuca. Mas, o que posso fazer neste exato momento, quando o que mais quero é o teu corpo líquido no meu corpo sólido e pesado?

Se eu pudesse, voltaria neste momento às ruas da minha infância em Resende Costa. Nada aqui de romantizar a minha vida de criança. Mas, garoto, eu tinha mais ímpetos debaixo da chuva, caminhava enxurradas inteiras para depois ouvir gostoso os xingamentos da minha mãe dizendo que eu poderia me constipar. E eu lhe dizendo que nada, mãe! Disso não se adoece. E depois a senhora vindo e me dando leite quente ou chá quente para combater a friagem. Ainda bem que você não tava descalço! A friagem entrando pelo pé é pior. Mal sabia ela que, na verdade, eu caminhara descalço e que somente em casa eu tinha colocado os sapatos. Ou então ela sabia, mas fingia não saber.

Me vieram agora, mais do que nunca, saudades da senhora, mãe. O desejo de ter mãe de novo, sempre renascida, brota desta chuva como brotam flores que trazem vida e felicidade.

O que esta chuva caindo faz é me trazer de volta a senhora, mãe, sempre quente e doce. A senhora para sempre eterna.

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário