Um sobrinho de minha mãe faleceu hoje no fim do dia. Notícia que me chegou há pouco, por telefone. As telecomunicações, como todo e qualquer veículo comunicacional desta vida, carregam boas e más notícias. Esta, creio que ruim, me chegou agorinha mesmo. Meu pai me disse, assim que perguntei por ele, por meus irmãos, cunhados e sobrinhos: “Quem faleceu hoje foi o Zezé Tiago, marido da Chica”.
Um pouco mais novo do que minha mãe esse sobrinho, talvez um pouco mais velho – idades que, por fim, regulavam entre si, uma perto da outra.
Lembro que ele estivera presente no dia em que minha mãe se fora. Meus olhos baços de dor, úmidos de agonia, e mesmo assim puderam vê-lo tristonho no velório. Apertos de mão, olhares, condolências verbal e gestualmente distribuídas, e lá estava o sobrinho de minha mãe, ajudando-nos a velar o corpo dela já se despedindo desta vida.
Falei com meu pai algumas palavras usuais, porém verdadeiras. Tipo esta vida passa mesmo, pouco mais de dois anos depois da mãe, a Chica com certeza está triste (ela e os filhos), oremos por todos eles para que tenham força nesse luto...
Do outro lado da linha, a concordância do meu pai. A vida é isso mesmo, meu filho. Tudo passa. “E amanhã vou lá no Ribeirão, no velório. Ele teve no velório dos seus irmãos e da sua mãe. Agora vou lá pagar. Tenho que ir, não tenho?!”
Nas palavras do meu pai, antigas lições que sempre busquei aprender.
Ele vai amanhã ao velório, na zona rural a 14 quilômetros da cidadezinha, mas isso não vai ser por obrigação, não. Nem por costume. Há algo mais nobre do que o dever a ser cumprido, mais importante do que o mero cotidiano, este por si mesmo maravilhoso. Ele vai porque a morte precisa ser cuidada, compartilhada, vivida no coletivo para que não nos sintamos sozinhos, nem nós nem quem morreu. Os velórios são muito importantes. São a demonstração clara de nossa fragilidade e ao mesmo tempo de nossa grandeza.
Fui fazendo brincadeiras tais como o senhor pode ir a pé, é bom que exercita. E ele respondendo que vai fazer isso, apesar de estar com 84 anos e não ter mais condições de andar tão longe. Nós dois rindo do que na vida se nos oferece. E eu lhe falando que, se abusar, suas pernas estão melhores do que a minha. “Afinal, meu sedentarismo perde para o movimento constante do corpo esperto do senhor.”
Conversa vai, conversa vem, e terminei a chamada telefônica feita para ele. O silêncio se instaurou em mim, e me sentei aqui para escrever esta crônica. Imersos nos silêncios, temos sempre o que dizer. Nunca nos calaremos.
E o que dizer aqui? Como explicitar o que se escreve? Já venho dizendo coisas desde o título deste discurso. Venho falando do que acontece todos os dias pelo mundo afora. Morremos. Morre-se.
Antes de tudo, porém, nascemos.
O sobrinho de minha mãe, por exemplo. Minha mãe mesma, antes de tudo. Morreram, mas estão nascendo aqui cada vez que os nomeio. Zezé. Laura. Isso não são apenas dois nomes. Ao escrever essas duas palavras, os seres nomeados voltam a viver. Se pensamos, falamos e escrevemos, não é possível haver o fim de tudo e de todos. O mundo não tem fim.
Bem sei do que é certo. Meu primo dorme agora. Minha mãe deitou-se entre flores no dia 23 de maio de 2022. Estávamos saindo de uma pandemia terrível, e todos nós preocupados com nossos pais, vendo no vírus da Covid-19 os males encarnados, para de repente minha mãe adoecer de outro mal e partir.
O corpo se vai, mas nós permanecemos. Permanecem dona Laura e o Zezé nestas linhas. Sei que permanecem. Por isso o meu amor pela memória, esse processo de reviver, mesmo que de modo diferente, o já vivido. A vida repetida e amada.
Escrever “Laura” e “Zezé” é o mesmo que promover um rito, prestar homenagem, fazer uma cerimônia. Escrever esses nomes é cultivá-los com esmero para florescerem redivivos do fundo do escuro. Escrevendo, somos sacerdotes adorando em êxtase o que não finda: a profunda vida.
Mônica Baêta Neves Pereira Diniz - 05/01/2025
Querido amigo e poeta Evaldo, não conheci seu primo Zezé, acho. Desculpe-me, mas não consigo associar mais e bem como antigamente, os nomes às pessoas. Mas Dona Laura eu conheci e me lembro bem dela! Tenho, inclusive, fotos da minha primeira visita a sua casa, há quase 20 anos. Boas lembranças que tornam a vida infinita verdadeiramente. Vivamos com essa memória que nos traz os seres amados ao presente sempre que assim o desejarmos.