“Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão / todo artista tem de ir aonde o povo está.” Essas palavras de Milton Nascimento ecoam em minha memória de amante de música. E o brilho diamantino desse agrupamento de vocábulos me diz do que brilha em nós, estes seres fazedores e consumidores de arte. Cada qual de nós é homo ludens – existência que desde os tempos primitivos se perfaz no jogo instaurado nos diversos ritos e com variadas linguagens. Na canção de Milton, o som de “encharcado” reverbera em “chão”, nossa alma cheia de húmus, daquilo que nos compõe. Essa totalidade espiritual e material me tomou por inteiro no show finíssimo de Caetano Veloso e Maria Bethânia no dia 7 de setembro último. Os dois irmãos chegaram até nós no Estádio do Mineirão lotado de gente e de melodia.
Com alegria e alegria, cantamos todos em acompanhamento aos irmãos, numa plateia irmanada sem a necessidade de lenço e documento, multidão desconhecida se roçando ao resvalar da brisa de uma noite suave e de uma lua leve não inteira, mas completa. No seio de uma Belo Horizonte noturna, passamos a ser doces bárbaros às avessas, porque invadidos de alto astral, lindas canções, afoxés, astronaves, aves – tudo num cordão de vozes em coral de festa.
Era gente brilhando e orando ao tempo. Entre o macho céu e a feminina terra, éramos fêmeas e machos simultaneamente. “E em tudo a voz de minha mãe e a minha voz na dela”. A noite bela e boa doendo em mim a saudade de quando minha mãe, antes de virar estrela, cantava cantadeira. Era a presença renovadora entrando pelos sete buracos da minha cabeça. Uma canção pra ela, minha mãe, mineira e seresteira. E na minha memória a minha mãe, ó minha Nossa Senhora, ó minha Mãe Menininha, virou donzela de novo e de novo se casou, com vestido e véu e flor. “Minha flor no cafezal – era a voz da minha mãe Laura entre as vozes de Bethânia e Caetano. E tudo novamente, novidadeiro e sempre eterno: a lembrança nostálgica plantando semente e raiz. Minha mãe me dando ao mundo, me ensinando deveres e direitos mais do que lavrados. Meu pai me avidando amoroso e rígido, me dizendo da dor do mesmo mundo, do seu vinho desnudo e da sua via dolorosa. O meu povo sofrido e alegre, porque a vida é uma senhora ambígua, a vida é uma festa sem hora.
Apaziguado, porque a arte tem esse poder divino, me senti sendo dois rios correndo irmanados para o mar, escorrendo para o encontro final. A água e eu sendo apenas um, doce ou salgado o nosso corpo, não importa. Eu sendo água afro-brasileira, povo resistente, como resistentes foram meus ancestrais paternos, do lado do meu avô em cujo corpo foram morar indígenas e negros. Todos nós sendo filhos de Gandhi, espíritos e matérias na festa da carne, na manifestação de nossa beleza e de nossa alegria na diversidade. Na festa do nosso corpo e do nosso espírito – uma festa inteira e toda –, a vida ao rés do chão parece um céu de estrelas. E o rio correndo, fluminense ou baiano, mineiro ou paulista – sempre artista na arte de viver.
Ouvindo os irmãos cantadores, revivi Iracema e Carmen Miranda, fiz um movimento mental pelo meu país, o de ontem e o de hoje. Perante mim, os marginalizados sob as botas de generais e pelas cidades atuais, indígenas (virão que eu vi) descendo sobre a vida límpida e passarinha. E a fé, mesmo a abalável fé, se dizendo e se gritando aos quatro ventos: pra quem é forte, pra quem é foda, pra que não foge à luta mesmo não usando clava, pra quem não perde o foco – fé, enfim, pra enfrentar esses filha da puta dominadores.
No dentro das músicas, nossos ouvidos se expandiram para fora, lançando chuva e areia no Saara, jorrando romãs e iaras no recôncavo do Estádio do Mineirão. Sob o céu belo-horizontino, plantamos nossos pés nas arquibancadas e voamos como águias pelo céu amazônico e romano.
Senti profundamente como a vida e a morte também são irmãs. Senti e sinto. Tomando uma cajuína e recebendo rosa pequenina, cada qual de nós sente roçar no frágil corpo a consolação nossa maninha. E assim nos sentimos amparados, nunca sozinhos. Temos amor leãozinho com sua juba de sol, temos a lembrança que não nos deixa esquecer quem amamos, pois nunca aprendemos a esquecer. E a lindeza de quem amamos é sempre mais que demais, tão demais que nos arrebentamos de amor, que os nossos corações explodem, que nossas bocas ainda se sentem molhadas pelos beijos nunca cessados. Na América do Sul ou no Japão, no Polo Norte ou no Polo Sul, amamos em inglês e em braile, em português e em híndi. Entre piscinas, margarinas, Carolinas e gasolinas, nós nos amamos como vacas profanas e suas divinas tetas. Com nossos quereres tão desconexos e conectados, no mundo múltiplo e vertiginoso, respeitamos nossas lágrimas, porém muito mais nossas risadas.
Sabemos que a vida é mesmo assim: ela se faz de lisuras e de dobras, de suavidades e de asperezas. Aprendemos, no entanto. Aprendemos mais de D(eus), pois ele nos habita e cuida de nós. Está sempre conosco aquele que é, foi e vai; que é o tudo e o nada; que é raso, largo e profundo; que é o início, o fim e o meio – eternamente e de novo. Na multiplicidade que nos atordoa, não andamos à toa, e vamos singrando na terra, no fogo, na água e no ar. Mesmo se não estamos em Deus, ele está em nós. No jogo de viver, a arte de sorrir impera com dentes ridentes, ainda que o mundo diga “não”.
Daí a dança da vida. Esta que arranca e pula, que treme e balança, que ginga e que ora, que pulsa e pulsa em sua veia e na qual queremos mais e mais, almejamos barcos e cais, ambicionamos os faróis e seus sinais. Desejamos ouvir e cantar! Ao som de “Odara” a dor se apaga, o nosso corpo se alegra e declara que o mundo pode ser feliz. O nosso corpo sabe que todas essas canções foram feitas pra nós.
Mônica Baêta Neves Pereira Diniz - 27/09/2024
Assim como todas essas letras e palavras amáveis e sonoras foram escritas para o nosso deleite! Obrigada por compartilhar memórias, amores e dores, saberes e dissabores, mas também sua energia e alegria de viver, apesar de todos os pesares. Receba os parabéns por mais este brilhante (inter)texto!
Rosa Maria Saraiva Lorenzin - 26/10/2024
Que delícia ler essa crônica e ser teletransportada através das canções para o mundo das artes e para o show de Bethânia e Caetano.