Vitrine
01 de Marco de 2023, por José Antônio 0
A vitrine foi feita para a mulher.
Homem não fica encarando mostruários. Ele passa direto e vai lá dentro da loja comprar o que ele quer. A vitrine é medusa que seduz apenas olhos femininos.
Tanto é que as roupas e os sapatos à mostra são femininos. O manequim masculino se reduz a um tímido boneco sem graça que ninguém olha, nem mesmo os homens.
Mas com a mulher é diferente: ela precisa flertar com o produto que está atrás do vidro. Às vezes, nem compra. Porém, o ato de parar e ficar olhando ela não dispensa.
Tem mulher que para na vitrine, olha demoradamente o produto, entra na loja, vê a coisa de perto, agradece a atendente... e não leva nada. Pior: no dia seguinte, para de novo em frente à mesma vitrine e ainda traz uma amiga para ficar olhando com ela.
É só andar pela rua que você verá mulher que para mais em vitrine do que cachorro em poste. Não sei o que passa na cabeça de uma mulher quando ela está em frente à vitrine. “Quero comprar”.
Mas isso é óbvio demais.
Passam outras coisas, coisas além – muito além! – na cabeça dela enquanto está ali. Olhos fixos, pescoço rígido, algumas ainda balbuciam alguns sussurros enquanto namoram o vidro.
Ontem eu tive uma oportunidade de saber alguma coisa disso tudo. Parei ao lado de uma mulher que estava estacada em frente a uma vitrine. Cheguei aos poucos, nem olhei pra ela. Fixei meus olhos numa camisa masculina, mas observando minha parceira de vitrine. Ela olhava, olhava, olhava de novo... andava de um lado para o outro... sempre olhando.
Foi aí que ela notou que o vidro dava reflexo e que o reflexo era formidável para a sua vaidade. Ela então parou de namorar a vitrine e ela mesma se colocou na vitrine. A mulher, pelo reflexo do vidro, admirava-se a si mesma, fazendo poses, olhando-se de lado, mexendo nos cabelos...
Acabou vendo que eu assistia àquela cena toda. No ridículo do flagrante, ela se aprumou de repente e, antes de ir embora, ainda me lançou um sorriso sem graça.
Fui embora entendendo um pouquinho mais do íntimo feminino. Esse íntimo também se coloca numa vitrine, mas somente se revela quando a gente percebe o que ele reflete.
E aí, fica mais fácil conquistar o que esse íntimo oferece... sem precisar forçar a vitrine.
Vida nova
26 de Janeiro de 2023, por José Antônio 0
Mensagens, abraços... tudo desejando que no Ano Novo os meus sonhos se realizem. Confesso que andei falando isso para algumas pessoas também. Nada de mais em esperar alegrias. Porém, esperar essas coisas somente no último dia do ano é de menos.
E vem toda aquela coisa de certas pessoas ficarem deprimidas nas festas de fim de ano. Fica lá o cara com a taça de champanhe na mão, chorando e abraçando quem aparecer na frente, todo de branco. Típico deprê do fantasminha beberrão.
Essa tristeza, pelo que venho pesquisando em meus arquivos de cotidianidade nas mais cretinas enciclopédias do empirismo, aparece porque o indivíduo assume o seguinte lema no réveillon: Eu TENHO que ser feliz no ano que está começando.
Ano Novo, vida nova!
... mas é agora que você assume isso? No último dia do ano que está acabando? Você teve 364 dias inteirinhos para construir realizações. E aposta na alegria somente no último minuto do último dia?
Não são fogos iluminando o céu que vão trazer a felicidade... Pirotecnia das ilusões coloridas...
Não são beijos na boca que vão buscar a alegria. Ósculos fugidios nos lábios da euforia...
Não são bebedeiras que vão instaurar a tranquilidade. Pobre paz afogada no porre...
Não são pulinhos nas ondas à meia-noite que vão garantir os bons ventos do Ano Novo. Ao final das ondas, o naufrágio das expectativas...
Não são sementes de romã que vão fazer germinar a fartura no ano que começa. O estômago não é terra fértil para esse tipo de plantio...
No réveillon, muitos dos candidatos à felicidade olham para o Ano Velho como se estivessem se livrando de um fardo pesado e inútil: “Xô, Ano Velho! Vá embora, Ano Velho!”
Se mandam o Ano Velho para o lixo é porque nada dele serviu.
Se o ano que passou tivesse sido um espaço e um tempo de construção da alegria, da paz, da saúde e da fartura, então os fogos de artifício, os beijos na boca, os brindes, os pulinhos nas ondas e as sementes de romã seriam consequências felizes de uma consciência tranquila, e não um salto no abismo sádico das esperanças sem raiz.
E não cantaríamos “Adeus, Ano Velho”... e sim “Obrigado, Ano Velho... Feliz Ano Novo!”
Nada de especial no ano que começa. Os dias continuarão com as mesmas horas, a mídia continuará com as mesmas estratégias, alegrias aparecerão, lágrimas rolarão... O que deve ser especial, arrebatador, emocionante e alegre é o meu entusiasmo comigo mesmo, o meu compromisso de sempre fazer de mim uma edição renovada e revisada de acordo com as novas regras do acordo existencial. Esse tipo de comprometimento tem que ser todos os dias.
O réveillon nos lembra essas coisas, porém jamais vai garanti-las.
Cabe-nos escolher: a euforia do momento ou a alegria para além do momento.
Estrela de Natal
21 de Dezembro de 2022, por José Antônio 0
Quem disse que estrela não fala?
Um dia, um poeta confessou que ouvia as estrelas e que as pessoas diriam que ele, por causa disso, teria perdido o senso. Até que é um pouco verdade. Concordo que para falar com as estrelas é necessário perder o senso... mas o senso comum. Aí, sim, você poderá encontrar o bom senso.
Falar com as estrelas... ouvir as estrelas... saber quem elas são. Cada uma traz em si a missão do brilho. Até quando já estão mortas, brilham através dos anos-luz. Estrela da manhã, estrela da tarde, estrela do mar, estrela d’alva, estrela cadente, tanta estrela, meu Deus! É só olhar para o céu que a gente vê que toda hora é a hora da estrela.
E eu? Eu sou uma estrela que está falando com você agora. Sou a Estrela de Natal. Você sempre me vê em cima da gruta dos presépios. Alguns me confundem com cometa. E aí, me colocam aquele rabão colorido. Acabo ficando que nem vaga-lume vestido de noiva. Não sou cometa, sou estrela. Estrela de Natal.
Porém, não sou a Estrela do Natal, pois quem realmente brilha nesse dia não sou eu, e sim o Dono da festa. Eu apareço apenas para dar um toque a mais. Sei que tenho uma certa importância, e isso me envaidece um pouco. Por exemplo, sempre quando fazem a árvore de Natal, eu sou a última a ser colocada, com toda pompa, lá em cima. Quando fazem o presépio, lá estou eu indicando o caminho para os Reis Magos.
Mas a importância que eu realmente quero ter é fazer você perder o senso... o senso comum... o senso comum do Natal.
O senso comum do Natal é amigo oculto, peru assado, vinho, ceia, nozes, sininho tocando, músicas com harpa paraguaia, abraços, trocas de votos de felicidade, presentes, Papai Noel, roupa nova, brindes, falatório, risos... Isso é bom. Isso faz bem. Mas falta algo aí para que o senso comum se transforme em bom senso.
Quando você vai a uma festa de aniversário, você come, bebe, diverte-se usufruindo de tudo aquilo que o aniversariante preparou para os convidados. E o que você diz ao dono da festa? “Parabéns pelo seu aniversário! Adorei! Está tudo ótimo. Demais a festa! Obrigado!”
Pois é... no Natal, o Dono da festa prepara tanta coisa para os convidados, dos quais você faz parte. Prepara a alegria da família reunida, a música da confraternização, a ceia da saúde, o abraço da amizade, o brinde da paz... tanta coisa para você aproveitar nessa noite. E você, como todo convidado, aproveita. Que continue aproveitando!
No entanto, se não for por uma questão de fé, que seja pelo menos por uma questão de etiqueta: já que você foi convidado para uma festa de aniversário, dê os parabéns ao aniversariante. Diga a ele também que está gostando muito do que ele preparou para você. Agradeça pela família reunida, pela confraternização, pela saúde, pelas amizades que você tem, pela paz que se instalou em seu espírito. Faça um brinde de gratidão ao aniversariante. Desse modo, você estará ouvindo uma estrela e quebrando o senso comum para assumir o bom senso.
Só mais uma coisa, caso você já nem se lembre mais: o nome do aniversariante é Jesus. Você o encontrará no lugar e no momento mais simples da festa.
Casei-me com a garota do telemarketing
23 de Novembro de 2022, por José Antônio 0
No começo, até que era divertido. Ele já não precisava mais ficar fantasiando sobre quem estaria do outro lado da linha. Agora, a garota do telemarketing almoçava em sua mesa e dormia em sua cama. Ele tinha uma garota do telemarketing somente pra ele.
O início do conúbio foi casual. Ela ligou e ele atendeu. O papo foi rápido, com ofertas da parte dela e recusas da parte dele. Numa outra vez, a conversa andou um pouco mais. Ele acabou comprando o que ela oferecia.
Do casual, passou pro comercial. Do comercial a coisa descambou pro pessoal, do pessoal pro emocional, do emocional pro sexual, do sexual pro conjugal. E aí, já estavam amarrados um no outro, mesmo sem fio.
Antes de se juntarem, era aquele “Bom dia, senhor!” pelo telefone. Tão maquinal quanto abraço de político. Pois você acredita que, embora estivessem casados e morando juntos, ela não perdia a entonação? Com aquela melodia irritante de quem quer obrigar a comprar qualquer coisa que não é necessária, a garota dizia pra ele todo dia: “Bom dia, senhor!...” “Te amo, senhor!...” “Vem pra cama, senhor!...” “Estou quase lá, senhor!...”
Ele achava isso a coisa mais sexy do mundo.
No Dia dos Namorados ele dava flores pra ela. E era aquela coisa de sempre:
– Obrigado por ter se lembrado, senhor! Assim que possível, estarei dando o retorno, senhor. Palavras e atos amorosos estarão sendo enviados à sua pessoa, senhor. Caso o senhor queira mais carinhos, pode estar solicitando por aqui mesmo. Os meus sentimentos agradecem a sua atenção. Tenha um bom dia, senhor!
Sua musa era a diva do gerundivo. Uma gerundiva!
Porém, não é só formatura de jardim de infância que enjoa: o casamento já começava a dar alguns sinais de desgaste. Ela ainda mantinha aquela entonação de boneca a pilha. No entanto, as frases... “Agora não, senhor!... Estou com dor de cabeça, senhor!... Aguarde um minuto, senhor!...”
Que saco! Se soubesse, teria se casado com uma boneca inflável versão robô.
– Mais alguma dúvida, senhor?
O negócio ficou insuportável quando, numa noite, ali deitados um ao lado do outro... De repente, rolou um clima. Ele, então, tratou de investir sobre ela:
– Agora não, senhor. No momento, meus canais estão todos ocupados, senhor.
Assim também não! Se os canais dela estavam ocupados, o negócio era tomar cuidados com os ramais dele. Você sabe, ramais, ramagem, galhada, galhos...
Estão separados. Já pensou se o conúbio virasse cornúbio?
A mulher é líquida
25 de Outubro de 2022, por José Antônio 0
Se a humanidade é de barro, o homem é pó e a mulher é líquida.
Mulher é água nascente. Forma oceanos e rios dentro de si. Marés e redemoinhos que ameaçam tragar e, ao mesmo tempo, refletem o firmamento.
Mulher é água de chuva. Revela apenas a cortina das nuvens... mas fica com os segredos do céu.
Mulher é água de lágrima. Às vezes doce... quando se encanta; às vezes ácida... quando argumenta; às vezes inebriante... quando se permite; às vezes amarga... quando agredida.
Mulher é líquida no sangue que flui, mostrando que ela pode gerar. Mas mulher também é líquida no sangue que borbulha, fervendo a revolta de milhares delas assassinadas, estupradas, esbofeteadas... Mulher é líquida nesse hematoma social, pois é sangue que não coagula: invade nossas veias e artérias numa transfusão que clama por justiça e respeito.
Mulher é líquida no leite que sustenta. Seios inesgotáveis que não deixam a humanidade perecer. Seios que mantêm a temperatura e o equilíbrio de seu leite na energia constante e mágica de um coração que pulsa bem perto deles.
Mulher é líquida no suor que sai de seus poros na luta para se manter, na luta para educar, na luta contra o preconceito, na luta para a conquista de seu lugar, na luta contra o desrespeito, na luta contra o luto.
Mulher escorre, percorre, concorre, socorre, discorre, recorre... Mulher só não corre... da raia.
Por sua natureza, a mulher consegue ser gasosa, sólida e líquida. Gasosa, quando algo não lhe interessa mais. Ela vira vapor e desaparece como bruma que se esvai. Sólida, quando seus sentimentos são traídos e ela se condensa toda no bloco resistente de sua dignidade. Líquida, pois, sem ela, nós homens seríamos a triste areia da ampulheta, que se distrai monotonamente com a sua própria secura.