Já não é novidade que o presidente enfrenta a opinião pública e governa para um grupo restrito de apoiadores que tem representado entre 25% e 30% do eleitorado. A preocupação com a criação de pautas mais conciliatórias e de uma imagem mais inclusiva do governo nunca esteve em voga desde janeiro de 2019. Isso ficou ainda mais claro no último mês, com a demissão do ex-ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, que era apoiado por 76% da população. Mas o governo vai além e tem demonstrado disposição para enfrentar até mesmo a opinião dentro do seu núcleo mais duro de apoio popular, o que ficou evidente na ruptura com Sérgio Moro e na aproximação recente de Bolsonaro com o chamado centrão. Tudo isso em meio a uma gestão atabalhoada da crise em saúde pública e econômica que começa a se apresentar como a mais severa da história do país. É um governo indiferente em relação à opinião pública e à criação de consensos.
Essa postura do governo revela, por um lado, a sua vocação autoritária, sua disposição para jogar com o conflito. Por outro lado, mostra a face da velha política brasileira, com a sustentação e o manejo pragmáticos do poder. Bolsonaro sabe bem que, nas circunstâncias atuais, para sustentar o governo e evitar um possível impeachment, ter uma base de apoio no Congresso Nacional será muito mais importante que o apoio da opinião pública. Temer tinha uma desaprovação popular inédita, mas governou com apoio do Congresso. FHC atravessou todo o segundo mandato com baixíssima aprovação, mas uma base de apoio congressista lhe permitiu governar. Bolsonaro conhece bem esse jogo porque viu isso de perto e sempre esteve lá do outro lado, no Legislativo, como parlamentar coadjuvante por 28 anos.
O último mês mostrou como o apoio no congresso pode valer muito mais para um governo do que a aprovação popular. Moro como ministro era um vínculo forte do governo com a opinião pública e com a base eleitoral de Bolsonaro. Foi rifado, ao mesmo tempo em que o Planalto se aproxima de parlamentares fisiológicos do centrão. Se a saída do ex-ministro da justiça feriu o governo em termos de aprovação popular, ela também, por outro lado, sinalizou positivamente para os interesses do centrão, ajudando a fortalecer o comprometimento desse grupo parlamentar com a defesa de Bolsonaro no Congresso, sobretudo no caso de um possível processo de impeachment. Afinal, políticos tipicamente fisiológicos, muitos dos quais envolvidos em corrupção, não viam bem a presença do ex-juiz no governo. Eis o jogo da velha política em ação: o presidente troca a vontade do seu eleitor pelo conchavo político em prol da sustentação do governo.
Outro dado interessante desse momento em que governo negocia em busca de apoio congressista e deixa a opinião pública em segundo plano é que, depois de meses em conflito com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), Bolsonaro se reaproxima do parlamentar. Os dois tiveram um encontro fora da agenda oficial há uma semana e Maia já arrefeceu as críticas contra o governo nos últimos dias. O presidente da Câmara continua sentado sobre mais de 20 pedidos de impeachment, fazendo a especialidade dos parlamentares chantagistas: negociar com governo fraco.
Enquanto a saída de Mandetta deixou claro que o governo não tem compromisso com a opinião pública para além da sua bolha de adesão popular mais aguerrida (os 30%), a saída de Moro e a aproximação com Rodrigo Maia e o centrão evidenciam que Bolsonaro está disposto a enfrentar até mesmo posições definidas dentro do seu núcleo mais duro de apoiadores. O eleitor bolsonarista fiel se sente, pateticamente, parte desse governo. Mas esse eleitor acaba de ser traído e trocado pela companhia daqueles que até o mês passado eram os “inimigos do presidente e da nação”. Nesse sentido, a gestão irresponsável diante da pandemia e as últimas medidas do governo têm-se revelado como um termômetro da febre bolsonarista. Até onde resiste a adesão dos grupos pró-governo, hoje estacionada em 30% da opinião pública? Apesar das imprudências do governo, um terço do eleitorado tem-se mostrado resiliente no apoio ao presidente.
Na demissão de Moro, para além do conflito em torno da nomeação do diretor da Polícia Federal, há uma sinalização do governo aos parasitas do centrão, especializados em pressionar presidente fragilizado. No frigir dos ovos, o governo não se esforçou para sustentar boa relação com Moro, visto inclusive como concorrente em potencial por Bolsonaro. O que importou de fato não foi o que ex-juiz da Lava-Jato representa para a opinião pública ou mesmo para os 30% de adeptos aguerridos do bolsonarismo. O que importou é o que Moro representa para o projeto de poder de Bolsonaro e para a ala fisiológica e corrupta da política, fundamental na estratégia de sustentação parlamentar do governo.