2021: convocação e homenagem
20 de Janeiro de 2021, por João Magalhães 0
Tenho como caraterística, nos momentos finais do ano, fazer uma revisão do espaço onde estão vivendo o meu ser, o tempo e minhas características pessoais. Ou seja, a minha ambiência, os movimentos, portanto, as mudanças trazidas pelo passar do tempo e minhas condições individuais. Resumindo: onde, quando, como.
Convocação. Neste momento, em minha frente, o “Programa Nacional de Direitos Humanos” elaborado pela Secretaria Nacional dos direitos Humanos em 1998. Conjuntamente, o pensamento, carregado de emoção, está no falecido 2020. Ano de muito luto. De muito negacionismo. De surpresas vitais. Ano em que os Direitos Humanos foram muito vilipendiados. Ano discípulo dos anos de ditadura: a de Getúlio Vargas e a dos militares de 1964 a 1985!
“Direitos humanos são os direitos fundamentais de todas as pessoas, sejam elas mulheres, negros, homossexuais, índios, idosos, portadores de deficiências, populações de fronteiras, estrangeiros e imigrantes, refugiados, portadores de HIV, crianças e adolescentes, policiais, presos, despossuídos e os que têm acesso a riqueza. Todos, enquanto pessoas, devem ser respeitados, e sua integridade física protegida e assegurada.
Direitos humanos referem-se a um sem número de campos da atividade humana: o direito de ir e vir sem ser molestado; o direito de ser tratado pelos agentes do Estado com respeito e dignidade, mesmo tendo cometido uma infração; o direito de ser acusado dentro de um processo legal e legítimo, onde as provas sejam conseguidas dentro da boa técnica e do bom direito, sem estar sujeito a torturas ou maus tratos; o direito de exigir o cumprimento da lei e, ainda, de ter acesso a um Judiciário e a um Ministério Público que, ciosos de sua importância para o Estado democrático, não descansem enquanto graves violações de direitos humanos estejam impunes e seus responsáveis soltos e sem punição, como se estivessem acima das normas legais; o direito de dirigir seu carro dentro da velocidade permitida e com respeito aos sinais de trânsito e às faixas de pedestres, para não matar um ser humano ou lhe causar acidente; o direito de ser, pensar, crer, de manifestar-se ou de amar sem tornar-se alvo de humilhação, discriminação ou perseguição. São aqueles direitos que garantem a existência digna a qualquer pessoa”.
Passaram-se mais de vinte anos e estamos longe de atingir essas metas, expressas na substanciosa introdução ao Plano Nacional dos Direitos Humanos de 1998. Em alguns casos houve até recuo. Há que se convocar todo brasileiro de boa vontade a batalhar pelos direitos da pessoa. É a única maneira de sanear a poluída atuação de nossa política.
Vamos transformar estas metas num programa de luta neste alvorecente 2021?
Homenagem. Em 22 de novembro de 2020, fez um ano de morte do rabino Henry Sobel (1944-2019). Nasceu em Portugal. Educou-se nos EUA. No Brasil, rabino-mor da Congregação Israelita Paulista, destacou-se na luta em defesa dos direitos humanos.
Ficaram marcados para a História sua posição firme, não permitindo o sepultamento na ala dos suicidas do Cemitério Israelita do Butantã, do jornalista da Rádio/TV Cultura, Wladimir Herzog, assassinado pela ditadura (1975) e também o culto ecumênico em sua homenagem na Catedral da Sé liderado pelo trio: Dom Paulo Evaristo Arns, ele, e o pastor presbiteriano James Wright. Momento tenso. Os arredores cercados pelas tropas do exército. Sou testemunha, pois estive presente na nave da catedral.
Ao aproximar-se a cerimônia da Haskará (cerimônia judaica em homenagem à memória de uma pessoa falecida), seu sucessor na Congregação judaica, rabino Michel Schlesinger, junto com o cardeal de São Paulo, dom Odilo Scherer, deram um testemunho de sua atuação (“Uma só casa de oração” OESP-24/11/2020 A2): “O envolvimento de Sobel em causas humanitárias se estenderia por quatro décadas. Do apoio aos despossuídos da cidade e do campo à defesa de uma solução negociada para o conflito entre Israel e palestinos, Sobel jamais se acovardou. Por isso era recebido e respeitado por todos os presidentes da República, assim como por todos os papas e mesmo pelo líder palestino Yasser Arafat.
Daí a relevância de marcar a Haskará do rabino Sobel com uma iniciativa inter-religiosa, reunindo líderes judeus, cristãos, muçulmanos, budistas, do candomblé e da fé Baha’í.
Uma conversa sobre o Natal
13 de Dezembro de 2020, por João Magalhães 0
O mês de dezembro é muito pontilhado pelos símbolos do Natal: Papai Noel, São Nicolau (em alguns países, Santa Claus, por causa de “Sinterklass”: São Nicolau em holandês), a árvore, as luzes, a estrela e sobretudo o presépio para o Catolicismo.
O Natal deste ano será diferente por causa da pandemia? Sei lá! Nota-se, nos últimos meses, um relaxamento meio generalizado quanto aos cuidados para evitar a propagação da Covid-19.No entanto, deveria ser o contrário, pois o Natal é a comemoração do nascimento, representado pelo nascimento de Jesus. A vida que nasce e renasce. Seus símbolos mostram isso: o velho Noel acarinhando e presenteando uma criança, a árvore florindo e gerando frutos, a luz dos astros sem a qual não existe vida, o menino numa manjedoura que mais tarde, segundo a tradição, dirá: “Eu sou o caminho, a verdade e a VIDA”.
Já a Covid-19... Apareceu e se inscreveu nos símbolos da morte. Tem sentido você comemorar o Natal, propagando esse vírus?
Há que se revitalizar os símbolos, que são sinais que mexem com o nosso interior, tanto no sentido positivo quanto no negativo, como é a suástica para um nazista e para um judeu. Todo símbolo é sinal, mas nem todo sinal é símbolo. Por exemplo, uma fumaça é sinal de algo que está queimando. Vira símbolo quando vinda de um incenso, levando uma pessoa a uma atitude de veneração, de oração etc.
É neste sentido que a revitalização é necessária. Os símbolos tendem a desgastar-se pela ação dos tempos (E vem a mania do latim: “Tempus edax rerum” – o tempo(esse) devorador das coisas!).
Ultimamente, acho eu, os símbolos do Natal pouco significam. São mais sinais que símbolos. Objetos de decoração, de enfeite, de propaganda e até de competição. Estamos esvaziando seu sentido fundamental.
Precisamos re-simbolizar os sinais de nossas festas. Atualizá-los para que reforcem as atitudes positivas. Por que não montar um presépio, de preferência com o fundo musical da “Missa dos Quilombos”, com texto do nosso “profeta” recentemente falecido, Dom Pedro Casaldáliga?
Neste presépio, o menino Jesus é um recém-nascido negro; sua mãe Maria, uma jovem negra: seu pai José, também um negro. Deu à luz em miseráveis condições (lembro ao leitor que “presépio” vem do latim: “praesepis”, que significa curral, estábulo) devidas ao preconceito racial estrutural que grassa ainda pelo mundo todo e continua matando o povo negro pelas forças policiais, fome, miséria, abandono. E o Brasil não é exceção, mesmo que alguns de nossos governantes digam o contrário!
E finalizo com o nosso genial Machado de Assis, por sinal nada religioso de frequência. Basta ver como se aproveita de um evento do Natal, baseado em lendas, que é a Missa do Galo (conto “Missa do Galo”. Curto, pode-se lê-lo pela internet), para uma reflexão sobre a educação social de sua época: machismo para o menino, subserviência para a menina.
E quanto a seu “Soneto de Natal”:
“Um homem – era aquela noite amiga/ Noite cristã, berço do Nazareno/ Ao relembrar os dias de pequeno/ E a viva dança, e a lépida cantiga/
Quis transportar ao verso doce e ameno/ As sensações da sua idade antiga/ Naquela mesma velha noite amiga/ Noite Cristã, berço do Nazareno/
Escolheu o soneto... A folha branca/ Pede-lhe a inspiração, mas frouxa e manca/A pena não acode ao gesto seu/
E, em vão, lutando contra o metro adverso/ Só lhe saiu este pequeno verso: “Mudaria o Natal, ou mudei eu?”
Machado, acho que não há solução para o problema que você poetizou se os dois não mudarem. O ser humano, como você bem trata na sua obra, vive numa eterna transformação. Vida supõe movimento (“Vita est in motu immanenti”,) que, por sua vez supõe mudança.
Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/ Muda-se o ser, muda-se a confiança/ Todo o mundo é composto de mudança/ Tomando sempre novas qualidades”.
Re-significar os eventos sociais e religiosos, ora extirpando suas raízes malignas, ora fortificando-as, quando vitais, é uma necessidade e faz parte da missão do ser humano... Por enquanto, o único ente capaz de fazê-lo. E o Natal é um deles.
É o que penso. E você, leitor?
A pandemia e o Cemitério
18 de Novembro de 2020, por João Magalhães 0

Fachada do Cemitério do Carmo, no centro histórico de São João del-Rei (foto Vanuza Resende)
Imagens tristes de escavadeiras fazendo covas nos cemitérios, Brasil afora, no auge da pandemia... sepultamentos sem presença de familiares... caixões lacrados... inexistência de velórios... as pessoas sem poderem despedir-se de entes queridos... impressionam a nação. É um drama humano. Com certeza, a comemoração do Dia dos Falecidos, dois de novembro, sofreu modificações.
Vamos, antes, ao significado do nome. Cemitério: do grego “koimeterion”, que significa dormitório, local de repouso. Conforme o historiador medievalista belga Michel Lauwers (“O Nascimento do Cemitério – Lugares sagrados e terra dos mortos no Ocidente medieval”), um clérigo italiano do século XI, de nome Pápias, gramático e lexicógrafo, apresentou uma outra etimologia do vocábulo. Derivando, segundo ele, do latim “cinis”: cinza, Daí: “Cinis-terium”. Cimiterium: local onde os falecidos se reduzem a cinza. Pensamento, aliás, muito enfatizado na liturgia católica na Quarta-Feira de Cinzas, após o Carnaval: “Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó retornarás (“Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris”).
Aproximadamente, a partir do século IX, cria-se na cristandade o conceito de “terra cemiterial” (terra cimiteriata). Terra consagrada, pela Igreja Católica. Campo santo que abriga os restos mortais de seus adeptos.
Estudos antropológicos, arqueológicos e históricos mostram que o culto aos mortos é uma prática universal entre os povos até agora conhecidos. Faz parte da natureza humana, que tem enorme dificuldade de aceitar a própria finitude. Daí o conceito cristão: a vida não é tirada, apenas muda-se (“vita mutatur, non tolitur”).
Os seres humanos buscam meios de permanecer juntos, embora inexista, pela morte, a presença física. E as fórmulas de manifestar sua lembrança, seu afeto, seu orgulho de pertencer ao clã do finado vão desde o sepultamento no piso das habitações até as fantásticas necrópoles, verdadeiros museus ao ar livre.
O culto supõe rito e rito supõe local e participantes. Daí a tríade: Cemitério, terra dos mortos; a igreja ou capela onde os ritos são vivenciados; e o povoamento, terra e habitação dos participantes.
O Cemitério com sua dimensão simultaneamente material (local dos restos mortais), espiritual (fé, orações, homenagens, promessas) e cotidiana (um dia viveram o cotidiano conosco) é uma criação da Igreja Católica, num processo lento, iniciado no século IV e que chega ao auge entre os séculos IX e XI.
Com o tempo, a terra dos mortos ritualmente consagrada e o próprio templo fundem-se. O templo, tornando-se uma extensão do cemitério, honra os falecidos mais ilustres com a permissão de túmulos no recinto sagrado e nos adros. Benfeitores, ao doarem terras à Igreja, punham como condição o abrigo de seus túmulos dentro do templo sagrado.
A sagração tem um efeito importante para a hierarquia católica, pois a Igreja se torna proprietária dos espaços consagrados, sempre mais fortificado pelo seu trabalho de misericórdia, a caritas cristã, em particular no domínio funerário. Por outro lado, afasta os não-católicos que passam a construir os próprios.
Citando Michel Lauwers: “Na sociedade antiga, a sepultura era assunto privado, pertinente às famílias – ou semiprivado, quando era providenciado pelos colégios. Só a inumação dos mais pobres era de responsabilidade das cidades, notadamente por razões sanitárias.”
A Igreja antiga prolongou essa tradição, como testemunha a reflexão de Santo Agostinho (morto em 430): a Igreja “como mãe piedosa assume a responsabilidade pelos fiéis defuntos enquanto ‘os pais, os filhos, os aliados ou amigos’ negligenciam esse dever”, ou como atestam as preocupações do arcebispo de Milão, Ambrósio (morto em 397), cioso em dispor em sua cidade terrenos destinados ao enterro dos pobres”.
Qual será o futuro do cemitério? Ao nascer, praticamente o cemitério extinguiu a cremação no mundo católico, mas a cremação está voltando e com grande adesão. Será o futuro? Difícil prever.
Acho que a atitude mais importante é manter a sacralidade do culto aos mortos. Entendendo por sacralidade momentos de vida em que você transcende, cultiva seu espírito, revitaliza ou reforma suas características de pessoa, vê como anda seu grau de humanismo, revivencia os momentos juntos com aqueles cuja vida na Terra teve fim: os finados.
É o que penso. E você?
As eleições 2020 estão chegando...
11 de Outubro de 2020, por João Magalhães 0
Época de efervescência política. Apesar dos defeitos, feliz o país que periodicamente tem eleições livres.
Começo aplaudindo Thomas L. Friedman, do “The New York Times”: “Para que uma política saudável floresça, ela precisa de pontos de reflexão fora de si mesma. Pontos de referência da verdade e uma concepção de bem comum – explicou o filósofo religioso Moshe Halbertal, da Universidade Hebraica – quando tudo se torna político é o fim da política”. Continua Friedman: “Em outras palavras, quando tudo é política, significa que tudo se trata apenas de poder. Não há centro, há apenas lados. Não há verdade, apenas versões. Não há fatos, há apenas uma competição de vontades”.
Frente às utopias (gr. “u topos”: nenhum lugar) nas falas, propagandas e promessas dos candidatos, aliás, de pouquíssimo crédito, ou quase nenhum, da parte dos eleitores, espera-se que se resulte alguma eutopia (gr.“eu topos”: bom lugar). Esperança frustradíssima, por exemplo, no atual regime governante do país, acho eu. O que mais surge é uma distopia (gr. “distopia”: mau lugar) atrás da outra.
Tenho dito, por acompanhar tanto tempo os eleitos do país, que um eleito eticamente comportado, que não compra votos, que assume seu cargo tendo em vista o bem-estar coletivo e luta por essa causa até o fim, raramente se reelege. Pior: poucos se elegem se não conseguirem muito dinheiro! Por quê? O cidadão sabe a resposta.
Para haver melhoras substantivas na política das nações democráticas de direito, uma exigência seria fundamental a todo candidato: uma Ética Social inabalável. Melhor dizendo, jamais violar os princípios da Ética Social que podemos concentrar em 6: Dignidade da Pessoa Humana; Direito de propriedade; Primazia do trabalho; Primazia do Bem comum; solidariedade; subsidiariedade (suprir o que falta).
E aqui cabe uma reflexão sobre Tolerância, atitude a meu ver muito importante para a democracia. Norberto Bobbio, Karl Popper e Umberto Eco serão meus guias.
Bobbio faz uma distinção entre tolerância negativa e tolerância positiva. Na negativa, você atura os defeitos, erros, comportamentos da pessoa ou grupos, por conveniência, por pragmatismo, mal menor etc.
A positiva se fundamenta na convicção de que a pluralidade de opiniões, em concorrência entre si, é condição essencial para sobrevivência e desenvolvimento de uma sociedade democrática. Isso não implica em renúncia das próprias convicções, nem abdicação do desejo de triunfo de sua posição. Mas implica, sim, em não excluir as demais posições. É o velho ditado: do debate nasce a luz. Ser tolerante não é ser indiferente.
“A Democracia, diz Bobbio, “pode ser definida como um sistema de convivência em que as técnicas da argumentação e da persuasão substituem as técnicas de coação para solução dos conflitos sociais. Tolerância do ponto de vista democrático é opção pelo debate, pela argumentação, pela persuasão, em lugar da coação ou da perseguição”.
Só que a tolerância tem limites. Concordo com Karl Popper em que a tolerância ilimitada pode ocasionar o desaparecimento da tolerância, ou seja, uma sociedade tolerante que não se defende dos ataques dos intolerantes permite a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância.
Saudades do “profeta” de nosso tempo, Umberto Eco, que nos deixou em 2016: “A intolerância mais perigosa é exatamente aquela que surge na ausência de qualquer doutrina, acionada por pulsões elementares. Por isso não pode ser criticada ou freada com argumentos racionais. Mas aí está o desafio. Educar para a tolerância, adultos que atiram uns nos outros por motivos étnicos e religiosos, é tempo perdido. Tarde demais. A intolerância deve ser, portanto, combatida em suas raízes, através de uma educação constante que tenha início na mais tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que se torne uma casca comportamental espessa e dura demais” (Da pequena coletânea de seus escritos e intervenções: “Migração e Intolerância” – Ed.Record – 2020).
A criança estuprada desde os 6 anos que, aos 10, engravidou do estuprador
13 de Setembro de 2020, por João Magalhães 0
Horrorizou e comoveu a população brasileira em sua maioria, no último mês de agosto, o chocante caso de uma criança de 10 anos, moradora no interior do Espírito Santo, grávida, que vinha sendo violentada por um tio dela desde os 6 anos de idade! O aborto, autorizado pela Justiça, foi realizado num hospital de referência em Pernambuco. O procedimento ao qual a criança foi submetida, assistido por equipe médica especializada, provocou manifestações grupais, contra e a favor, em frente ao hospital.
Extremistas divulgaram pela internet o nome da criança e o local onde seria atendida, ato de flagrante ilegalidade pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Consta ainda que grupos religiosos pressionaram, até com ameaças, a avó que cuida da menina para não permitir o aborto.
Estatísticas mostram a gravidade da situação. Em 2019, fizeram-se no Brasil 72 abortos legais de meninas de até 14 anos, 53,8% delas vítimas de estupro. Quatro menores de 14 anos são estuprados por hora no país e 75,9% das vítimas conheciam o agressor!
Esta coluna opinativa, cujo objetivo é estimular as pessoas a dialogar sobre acontecimentos e atos, tanto os de pouca contestação (o “verso”) como os polêmicos (o “controverso”), não pode se omitir sobre esse acontecimento de tamanha gravidade.
Lembrando o eficiente método da Ação Católica: Ver – Julgar – Agir (VEJA), muito adotado nos anos já longínquos pela Juventude Universitária Católica (Juc), Juventude Estudantil Católica (Jec) e Juventude Operária Católica (Joc), resumo, para municiar o ver e o julgar do leitor duas falas-testemunho do Dr. Olympio Barbosa Moraes Filho.
Uma, em 2015, no debate sobre a regulamentação da interrupção voluntária da gravidez nas primeiras semanas de gestação, promovido em audiência pública pela Comissão de Direitos Humanos do Senado. Outra, agora, pois é diretor do hospital que fez o aborto legal da menina.
Falas muito abalizadas, pois ele é vice-presidente da FEBRASGO (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia), filiada à FIGO (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia, ambas aliadas da OMS – Organização Mundial da Saúde). Dr. Olympio é também diretor do CISAM (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), que tem a segunda maternidade mais importante do Estado de Pernambuco.
É necessário retirar o aborto da esfera criminal, pois trata-se de um problema de saúde pública. Mulheres morrem ou ficam com sequelas, como esterilidade, infecção etc. Isto se dá quando o aborto é inseguro, clandestino, feito na ilegalidade e em condições precárias por curiosos ou agentes incompetentes e despreparados. Quando o aborto é seguro, ou seja, feito com assistência médico-hospitalar, isso raramente acontece.
Por que o Brasil não legaliza, deixando a decisão para a gestante, ou no caso de criança, para os responsáveis por ela, como já o fizeram uma maioria significativa de países desenvolvidos?
Psicólogos e psiquiatras que trabalham o problema afirmam que o maior dano para a mulher é tirar dela o poder de decidir. Quando ela sente que vai ser bem acolhida e legalmente atendida, poderá deixar a situação de vulnerabilidade em que se encontra.
O médico deve agir por práticas e evidências científicas e não por crenças e/ou convicções pessoais. Alegar objeção de consciência para não realizar (o aborto) é um direito do médico em sua individualidade, mas, por ética médica, é dever seu encaminhar para quem o faça. Por exemplo, sendo ele testemunha de Jeová, ao atender um necessitado de transfusão imediata de sangue, caso contrário ele morrerá, deverá fazê-la se não houver outro profissional que a faça.
Não se deve misturar religião com ciência, religião com assuntos de saúde, religião com Estado laico. Por exemplo, tem religião que proíbe métodos contraceptivos, sendo que eles evitam muitas mortes!
Concordo com as opiniões do doutor. A teocracia direta – poder religioso exercendo também o poder legal ou o poder de mando – pratica inomináveis injustiças. Atualmente, além de teocracias diretas, crescem muito as teocracias indiretas, ou seja, crenças religiosas, igrejas, dogmas, argumentos de fé, acuando o Estado para legislar favoravelmente às suas pregações. Não é justo. A lei é para todos e todos não têm a mesma religião, os mesmos princípios, a mesma fé. As religiões são muitas e divergem substancialmente. Há muitos cidadãos que não têm religião, nem fé.
Infelizmente, o Brasil está caminhando para essa teocracia indireta. É o que penso. E você?