Garçom, faz favor!
17 de Marco de 2020, por José Antônio 0
Leovaldo, meu amigo cismado e cheio de angústias, já foi garçom. Um dia, comentei-lhe que às vezes fica difícil chamar um garçom à mesa. Existe o gesto padronizado de se levantar o braço. Porém, há garçons que nunca veem, e a gente fica ali toda vida, com o braço pra cima, que nem Estátua da Liberdade assentada. Estalar os dedos? Nem pensar! Isso irrita o garçom.
Por outro lado, há garçons que são naturalmente psicólogos: sabem a hora de chegar e a hora de se retirar. Sabem até o que falar... e o que não falar. São garçons finos e bem preparados para o mise-en-scène. No entanto, há outros que seriam ótimos garçons se estivessem jogando futebol ou cantando pagode.
É o caso do garçom beija-flor: passa rapidamente de mesa em mesa, sempre deixando alguma coisa e nunca parando para coisa alguma. Impossível fazer um pedido.
Existe também o garçom caminhão de lixo: passa pelas mesas recolhendo copos sujos, restos de pizza, pratos por lavar, guardanapos usados... e vai embora em busca de mais coisas nas outras mesas.
Você já deve ter visto o garçom toureiro: aproxima-se de sua mesa, abre uma toalha e fica balançando-a na sua cara, como se você fosse um touro. Depois, dá uma rodada na toalha e cobre a mesa.
Há o garçom secretário: ele para ao lado de sua mesa, abre o bloquinho, empunha a caneta e fica empertigado à espera do seu pedido. A gente se sente como se fosse ditar uma carta. É característica do garçom secretário só dizer “boa noite” e “pois não”. Mais nada.
Já o garçom repórter é diferente: pergunta pelo seu pedido, dá opiniões e pergunta mais ainda. E todo mundo fica sabendo o que você vai comer, pois a conversa vira entrevista coletiva.
O garçom viseira? É aquele que apenas enxerga a mesa que está servindo. Ele traz o prato olhando para a mesa, serve olhando para a mesa e vai embora olhando para um ponto qualquer, que só ele vê. Nem aí pro freguês da outra mesa, que quer fazer um pedido ou mesmo pagar a conta.
O extremo oposto é o garçom periscópio: olha pra tudo quanto é lado, menos para quem quer pedir algo.
O garçom zangado também aparece: cara amarrada, não olha pra ninguém da mesa, não diz boa noite, não agradece, não se despede. Quando a gente pede a conta, ele a deixa na mesa, vira as costas e... some.
Ainda existe o garçom inventário: é aquele que nem espera o pedido. Vai logo dizendo o que o restaurante tem para oferecer. É um autêntico cardápio oral.
Foi numa dessas que o Leovaldo se estrepou: ele se aproximou de uma mesa ocupada por uma família e foi logo disparando o que tinha para oferecer:
– Boa noite! Eu tenho língua de vaca, costela de carneiro, asa de pato, peito de peru, coxa de galinha e pé de porco.
O menino arregalou os olhos e disse, entusiasmado:
– Quanto é que você cobra pra ficar pelado meia hora na Feira de Ciências da minha escola
As fotos do Mané Cráudio
19 de Fevereiro de 2020, por José Antônio 0
Ontem eu me encontrei com o Mané Cráudio. Terno preto, cabelo impecável e, no rosto, leves resquícios de uma maquiagem que foi retirada há pouco. Mané Cráudio é o meu amigo pagador de mico. Autêntico financiador do pequeno primata.
– Que chique é esse, Mané Cráudio? Em plena tarde de terça-feira e você assim todo produzido?
– Me convidaram pra posar de modelo. Várias seções de fotos ao longo do mês. E o dinheiro é bom.
Tudo bem que o Mané Cráudio não é feio... mas posar de modelo?
– Pra quem você está trabalhando, Mané Cráudio? Qual foi a agência que descobriu você? Alguma revista ou site de moda?
Aí o Mané Cráudio raspou a garganta, olhou para o bico do sapato e falou baixo:
– É pra uma funerária.
– Funerária?! Como?
– Visto um terno, o pessoal me faz a maquiagem e eu me deito no caixão. Então eles batem as fotos. Tem foto de perfil, foto de cima, foto de frente.... Cada seção é um modelito diferente.
– Do terno?
– Não. Do caixão.
Minhas palavras expiraram e deixaram meus argumentos sepultados pelo absurdo. Mas o Mané Cráudio continuava a falar. Aos poucos, seu constrangimento inicial ia sendo substituído pela empolgação.
– Velório agora é coisa chique. Você precisa ver os salões que andam inaugurando por aí. Tem até garçom e promoter. Com isso, os familiares do morto estão cada vez mais exigentes: só compram o caixão depois de averiguarem como é que o conjunto fica. Daí, a necessidade de um manequim deitado ali dentro, só para dar uma ideia.
– Mas, Mané Cráudio, e se o defunto for bem diferente de você? Obeso... outra cor.... ancião...
– Photoshop!
Meu amigo fazendo ensaios fotográficos para a morte. Ensaio tétrico de um espetáculo que ainda virá, quando as cortinas se fecharem. Mané Cráudio é o típico modelo de passarela, posando para todos os que estão de passagem.
– E tem mais: também sou modelo de porta-retrato para túmulo. Estou ficando famoso. Preciso encontrar um nome artístico pra mim.
E me deu uma de suas fotos para porta-retrato. Meio de perfil, olhar tranquilo e um levíssimo esboço de sorriso no canto dos lábios.
Mané Cráudio se despediu, convencendo-me ainda mais da sua predestinação ao mico. Fiquei parado, olhando aquele manequim de funerária indo embora. Onde ele estava com a cabeça? Ser modelo de porta-retrato para lápide de túmulo.
Peguei a foto que ele me deu e fiquei reparando: aquele olhar... aquele sorriso sutilmente esboçado... lembrei-me do Leonardo da Vinci.
Vou ligar pro Mané Cráudio e dizer que já encontrei um nome artístico pra ele: “Mona Lousa”!
Sobre a felicidade
21 de Janeiro de 2020, por José Antônio 0
Foi semana passada. Duas crianças me pararam na rua. Brincavam de fazer entrevistas pra televisão. O menino segurava no ombro uma caixa de sapatos com um tubo aproveitado de um rolo de papel higiênico, imitando uma filmadora. A menina, maquiada e com um microfone de plástico, era a repórter.
– Por favor, moço, uma entrevista para a TV!
Parei e esperei a pergunta. O menino mirava meu rosto, como se fosse atirar em mim.
– A felicidade existe?
O que responder? Eu mesmo já me fiz essa pergunta tantas vezes e jamais encontrei uma resposta digna de ser gravada. Felicidade...
A felicidade não foi feita para esse mundo. Ela apenas dá sinais momentâneos e esporádicos de que existe, mas ela não é daqui. Nem pode ser, pois felicidade é completude... e nesse mundo somos sempre incompletos. Porém, é justamente essa incompletude que nos impulsiona a viver. É porque nos sabemos incompletos que nós nos esforçamos para preencher tantas lacunas em nosso existir.
Precisamos da insatisfação para que haja mudança; precisamos da mudança para que haja transformação; precisamos da transformação para que haja satisfação. Há momentos para a insatisfação. Há momentos para o preenchimento. Esses dois universos se alimentam mutuamente e possibilitam a dinâmica da existência.
E a felicidade?
Sim, ela existe, mas ela é maior que nosso mundo, ela não cabe plenamente em mim nem em ti. No entanto, ela permite que nossos corações experimentem suas poucas gotas que ela deixa pingar em alguns momentos.
Experimento a felicidade naqueles momentos em que o pouco me basta, em que não preciso de nada, absolutamente nada além do sentido pleno do momento. Sinto a felicidade quando me vejo motivo de sorriso de uma criança... e não preciso de mais nada, apenas da poesia translúcida que o coração rabisca naqueles lábios infantis.
Degusto a gota da felicidade quando o resultado de meu imperfeito trabalho consegue virar gratidão em quem o recebeu; e não preciso de mais nada, isso me basta.
Experimento a gota da felicidade quando te amo, minha amada, e na intensidade do momento do orgasmo do corpo e da alma transformo a vertigem do teu desejo no espasmo arrebatador de vislumbrar o infinito... e não preciso de mais nada, a não ser de teus olhos úmidos e de teu corpo convite.
Sinto a gota da felicidade quando escrevo e meus escritos colocam, num caminhão de mudança, a alma de quem me lê, levando-a para habitar nos becos provocadores da palavra poética. E não preciso de mais nada... só isso.
Sinto a gota da felicidade quando converso com Deus e Ele me responde... e isso me basta, pois não preciso de mais nada além da certeza e da confirmação.
A felicidade é infinita, por isso ela é momentânea enquanto estivermos aqui. É nesses momentos de desapego e completude que vou aprendendo a ser feliz, que vou me aperfeiçoando no caminho dela, da felicidade plena: vou conhecê-la na sua plenitude quando eu finalmente me soltar de tudo o que me impede de ser pleno.
A felicidade é plena, logo eu também tenho que ser pleno. E a gente só é pleno quando não tem apego. São esses os momentos de felicidade em que acredito, que colocam um pouco de sentido nesse momento maior que chamamos de “vida”.
Quando, enfim, me virei para dar uma resposta aos dois repórteres, vi a câmera e o microfone no chão. As duas crianças já iam longe, cada um numa bicicleta, correndo um atrás do outro, gritando e rindo. Não eram mais repórteres. A plenitude agora era outra.
Sabiam ser felizes.
Criança lendo a redação sobre o Natal
18 de Dezembro de 2019, por José Antônio 0
O Natal
O Natal é uma festa de fim de ano. Perguntei pro meu pai o que é a palavra “Natal”. Ele me falou que quer dizer nascimento. Então eu pensei: se Natal é nascimento, então Natal é festa de uma vida que começa. Natal não é festa de fim de ano... mas de começo de ano porque alguém nasceu.
Minha mãe gosta de enfeitar o apartamento com uma porção de coisas coloridas. Ela fala que é Natal. Ela também prepara umas coisas legais da gente comer. Tem peru assado, fruta, refrigerante, rabanada, farofa, vinho... esse último eles não deixam porque criança não pode ficar tonta.
Fica tudo alegre e o apartamento cheio. Todo mundo conversando na sala, todo mundo com roupa nova, cabelo esticado, copo na mão e cheiro de banho.
A gente também brinca de Amigo Oculto. O Amigo Oculto é uma brincadeira. A gente brinca dele. Olha num papelzinho picado o nome da pessoa e então a gente tem que dar presente pra ela. O nosso Amigo Oculto é sem graça porque todo mundo já sabe o que é que vai ganhar. Minha mãe tem uma listinha com os presentes de todo mundo. Mas é só ela que sabe quem.
O Amigo Oculto tem umas coisas que a gente nem espera. Ano passado, eu saí com o meu pai, o meu pai saiu com a minha mãe, a minha mãe saiu comigo e nós três saímos da brincadeira porque travou tudo. Teve que começar de novo.
Tem também o Papai Noel. Ele aparece no Natal. Vem numa carrocinha. As renas são animais bonzinhos. A carrocinha do Papai Noel é o trenó. As renas puxam o trenó do Papai Noel. Ele é velho, tem barrigão, barba branca, touca na cabeça e anda de vermelho. Faz “Rô-rô-rô”. Eu nunca ouvi a risada dele. Nem sei do que ele fica rindo.
Como é que o Papai Noel entra no meu apartamento? Lá não tem lareira nem chaminé. Também não sei como é que ele sai. Só sei que ele vai.
O Papai Noel deixa uma porção de presentes na árvore de Natal. A árvore fica piscando a noite toda. O Papai Noel pode entrar nas casas de madrugada. Ele não leva nada das casas. Só deixa. É de confiança.
O Natal é festa do nascimento. Não é nascimento do Papai Noel porque ele já é grandão e velhinho, não dá pra ele entrar na mãe dele de novo e nascer outra vez.
Minha mãe me contou que quem nasceu no Natal é o Menino Jesus. Mas ele nunca nasceu lá em casa. Nunca vi o Menino Jesus. Todo mundo fala que ele é amigo, alegre e muito inteligente. Sabe fazer milagres e ama todo mundo. Perguntei pra minha mãe por que o Menino Jesus nunca nasceu no nosso Natal. Ela ficou quieta. Acho que não sabia.
Então eu falei pra minha mãe que eu vou falar pro Menino Jesus que ele vai poder nascer lá em casa. Acho que ele nunca nasce lá porque não encontra espaço.
Minha mãe passou a mão no meu rosto com ternura. Depois saiu de perto, enxugando os olhos.
O Natal tem dessas coisas. Mas não era pra ninguém chorar.
Bicho de papel
12 de Novembro de 2019, por José Antônio 0
Vai aí uma crônica para a criança que me lê. Principalmente para a criança que está dentro de você, meu leitor amigo, minha leitora confidente.
Criança que me lê, gostaria eu de deixar alguma coisa para a sua vida, para a vida do ainda de sua existência. Difícil tarefa com poucas palavras e uma crônica. Mas literatura é isto: buscar o muito mexendo com o pouco.
Você, com certeza, gosta de bicho. Bicho é divertido, companheiro, simples e... ensina muito. Faça de conta que minha crônica é bicho: diverte-se com as palavras, companheira das reflexões, simples no despojamento de frases chiques e – quem dera! – procurando ensinar algo. Vamos soltar os bichos pra gente entender o que é o bicho da crônica!
A crônica, criança, tem que aproveitar o momento, sem grandes pretensões, pois mais vale um pássaro na mão que dois na gaiola. A inspiração é assim: chega sedutora, mas exige trabalho. O jeito é escrever: o dono do boi é quem pega no chifre.
Às vezes, sai um texto bom e fico alegre como se tivesse visto o passarinho do rabo verde; outras vezes, sai um texto pobre, chato, conversa pra boi dormir. É aí que a gente tem que ser macaco velho: quando a crônica não está aparecendo como devia, é hora do cronista dar uma parada, ler, conversar, ouvir e prestar atenção, igual coruja. Assumo essa cautela, pois, como sou macaco velho, não meto a mão em cumbuca.
Por outro lado, já escrevi porcarias... e alguns gostaram. Também já aconteceu de eu escrever coisas ótimas... e poucos entenderem. Uma vez, quase me processaram. Que fazer? Os cães ladram e a caravana passa. Sabe? Cachorro que muito late não morde.
O desafio da crônica vale a pena: a pena de brigar com as palavras feito cão e gato; a pena de acordar no meio da noite, que nem galo pontual, e escrever para não perder a ideia; a pena de colocar risos e lágrimas, vidas e mortes em linhas contidas, para que o texto supere as palavras. Sempre soube disso e, quando escrevo, não posso pensar nessas coisas senão a crônica não sai. Eu quero é a minha crônica. Pode ser ela engraçada ou lírica, não me interessa. Tenho que abrir o curral das minhas angústias e soltar a embriaguez do meu coração. Não quero saber se o pato é macho ou fêmea, o que eu quero é o ovo.
Pois é... mas como conseguir isso, perguntarão alguns. Sinto muito, não ensino o pulo do gato. Apenas procuro organizar o que penso e o que escrevo, cada macaco no seu galho, apesar da minha crônica ser uma árvore em que cada leitor põe o seu próprio galho. No entanto, os macacos sempre variam de galho e a escrita leva a universos imprevisíveis. Por isso, meu texto parece um bicho, um bicho de estimação: revela mas não confia, brinca mas pode ferir. É um bicho, mesmo que de papel.
Aí vai mais uma crônica... ou será que aí fica mais uma crônica? Um dia, pretendi a permanência e a efemeridade me feriu. Gato escaldado tem medo de água fria. É melhor dizer que aí está mais uma crônica. Se vai ou se fica... só vou saber quando galinha tiver dente.