De Papai Noel
20 de Dezembro de 2023, por José Antônio 0
Foi só o Jurinélio chegar da rua e jogar aquela estranha sacola no sofá que a mulher ficou curiosa e quis logo saber do que se tratava. O marido escarrapachou-se no sofá, soltou um longo suspiro e respondeu:
– Roupa de Papai Noel.
– O que? Papai Noel? Você ficou maluco, Jurinélio? Pra que isso?
– Uns trocados a mais, Bibi. O décimo-terceiro vai atrasar, não lembra? Dei meu nome pra vaga de Papai Noel no shopping. Gostaram do meu tipo e me arranjaram serviço pra hoje e amanhã. Do jeito que estou gordo, não vou precisar nem de enchimentos. Além disso, o serviço é simples e folgado: é só ficar assentado numa cadeira, colocar crianças no colo, ouvir pedidos e dar conselhos. RÔ RÔ RÔ!!!
A mulher ouviu a explicação como se estivesse vendo uma rena de cinco patas e dois rabos: um absurdo!
– E essa sua hérnia, Jurinélio? Todo Papai Noel carrega muitos presentes. Você não pode pegar peso.
Era uma hérnia inguinal antiga. Incomodava mesmo. O negócio doía e já estava descendo pra onde não deveria descer. Jurinélio estava de saco cheio.
– Não tem perigo, Bibi. O saco é de brinquedo.
Acabou ouvindo:
– O seu saco é de brinquedo, mas a hérnia é de verdade.
À noite, a mulher ajudou o marido a se vestir de bom velhinho. Faltava somente a barba. Era uma barba de algodão sintético, branquinha e farta.
Bibi olhou o marido em frente ao espelho: gordo, todo de vermelho e com uma grande barba branca. Parecia mais o Karl Marx vestido de Saci Pererê. E foi desse jeito que o Jurinélio se posicionou na praça de alimentação do shopping.
Nenhuma criança se aproximava dele. Transitavam de mãos dadas com os pais, olhavam de longe, davam tchauzinho, sorriam tímidas... mas ir lá ninguém foi. Passavam direto e iam brincar dentro do trenó, humilhantemente colocado ao lado do Jurinélio. O jeito era fazer barulho, aparecer mais. Pegou um sininho e começou a agitar os braços:
– RÔ RÔ RÔ! Feliz Natal! RÔ RÔ RÔ!
Em vão. O trenó em silêncio e parado fazia mais sucesso do que o Papai Noel com hérnia. Jurinélio se sentia um acessório sem muita importância naquele shopping. Sem importância e sem explicação.
Diante do fiasco, a organizadora resolveu dispensar o Jurinélio do dia seguinte e contratou o trenó.
Passaram-se dois dias.
Foi só o Jurinélio chegar da rua e jogar aquela estranha sacola no sofá que a mulher ficou curiosa e quis logo saber do que se tratava. O marido escarrapachou-se no sofá, soltou um longo suspiro e respondeu:
– Roupa de anjo.
– Você ficou maluco, Jurinélio? Pra que isso?
Jurinélio conseguiu uma vaga pra ficar na praça central do bairro distribuindo mensagens natalinas de um supermercado... o Anjo do Natal!
Tudo bem que era um mico alado, mas pelo menos não precisava pegar peso.
Eu somos
22 de Novembro de 2023, por José Antônio 0
A unidade é uma? Ou a unidade é união?
A mesma coisa, sempre a mesma coisa, tende a nos levar à monotonia. A própria palavra “monotonia” já traz a ideia da unidade que cansa, pois não varia. É a chatice do único (mono) tom (tonia).
Somos apegados ao um. Visceralmente apegados a ponto de já estarmos adaptados a ele. Temos um só corpo... somos um indivíduo... queremos ter um alguém só para nós... queremos ser o único para alguém...
Parece que a coisa vem desde criança: “Era uma vez...” (e não mais de uma)
Há razões para esse apego ao um. Acredito que sim. Existe a sensação prazerosa da diferença que faz a diferença. Só eu sou assim! Só você me satisfaz! Somente eu estou em seu coração! Somente eu toco esse instrumento dessa maneira! Apenas eu, somente eu, falo desse jeito!
Quanta ilusão! Mesmo no um, a variedade subsiste de forma sutil. Para eu ser tido como único, é necessário que se considere que há o outro para depois negá-lo. Se existe um é porque existe o dois.
Mais de uma tonalidade já é suficiente para conferir às cores variadas combinações. E cada combinação aparece como se fosse uma só cor. Porém, na verdade, são diferentes cores que se mesclaram para que aquela nova aparecesse como sendo uma.
Por isso é importante a consciência de que a sensação de único é um tanto ilusória, uma vez que tudo é combinação de tudo. Até o átomo é assim. Até cada cor é assim. Até cada corpo é assim.
Em terra de cego, quem tem um olho é rei. Mas, para ser rei, é preciso ter os súditos. Logo, o rei não é único. Nem mesmo Adão foi o dono da primeira palavra, pois, antes dele, Deus já havia falado. Quanta inocência cega nas frases que cultuam o um. Para os arrogantes, o “um” passa a ser artigo definido, pois se refere somente, só, apenas ao um que se autoproclama a fonte inesgotável da unidade.
Eu sou um porque sou o melhor. Será? Não sei se tudo é questão de comparação ou de oportunidade. Se oportunidades fossem dadas a outros, o um passaria a ser o outro e o outro passaria a ser o um.
E aí você me objeta: “Mas e as impressões digitais? Sou o único que tenho as que tenho.”
E aí eu pondero como burro velho: “Você já estudou satisfatoriamente sobre clonagem?”
A mulher na bolsa
25 de Outubro de 2023, por José Antônio 0
Nossa cultura tem criado duplas memoráveis. São tão sólidas que chega a ser impossível pensar em um elemento sem a companhia do outro: feijão com arroz, cama e mesa, lápis e borracha, goiabada com queijo, sapato e meia... São duplas coesas e frequentes e até já fazem parte de nossa visão de mundo. Mas existe uma outra, unida e peculiar, que desbanca qualquer Batman e Robin ou Fred e Barney: é a dupla Mulher & Bolsa.
Essa dupla é tão interligada que mulher e bolsa assumem aparências que se tornam comuns entre elas. É interessante como as mulheres se parecem com suas bolsas. Mulheres magras levando bolsas miúdas, como se seus pertences fossem também franzinos; há bolsas cheias, redondas e grandes, carregadas por mulheres pesadas e altas. Bolsas bagunçadas, soltando papel, lenço e chave pelas bordas: mulheres desorientadas e descabeladas.
Ontem mesmo passou por mim uma senhora baixinha, encolhida e toda rugadinha: a sua bolsa era mirradinha, murcha e quase escondida no corpo da dona. Há também aquelas bolsas enormes e quadradas, muito coloridas e chamativas: são carregadas pelas peruas. Você já viu umas bolsinhas achatadas, pequenas e sem graça? Pois é, são levadas por mulheres decididas, objetivas e sem tempo para muitas delongas. (Romantismos? Nem pensar!!!)
Aquelas bolsas enormes feitas de tear, bem abertas e de contornos bastante lentos e preguiçosos, totalmente alienadas de qualquer vaidade ou sensualidade são carregadas pelas ripongas e todo tipo de bicho grilo.... falou, amizade? As bolsas alegres, cheias de cores, com vários adesivos colados... bolsas ora nos ombros, ora nas costas, ora no... na... Ih! Onde deixei a minha bolsa???... Essas são arrastadas pelas voláteis adolescentes.
Dá até pra fazer uma comparaçãozinha com a economia brasileira: se a mulher estuda uma posição estratégica... Bolsa de Estudos; quando a mulher carrega joias dentro da bolsa... Bolsa de Valores; se não há nada na bolsa... Bolsões de Pobreza.
(... tudo isso sem falar naquelas que rodam a bolsa e enredam o bolso!!!)
E lá vão elas. Mulheres... Verdadeiras bolsas de mistério... uns até engraçados. Pandoras da era de agora ou cangurus urbanos, seja lá o que for. Só espero que a mulher que anda abraçada comigo não esteja me levando a tiracolo.
Contra o tempo
27 de Setembro de 2023, por José Antônio 0
Existe um quadro forte do pintor espanhol Goya, no qual Cronos devora seus próprios filhos. Somos filhos do tempo e somos devorados por ele. O tempo não perdoa, ele é insaciável. Onívoro.
Quanto a mim, devo ser um tanto indigesto para o tempo. Ele me devora, mas custa a engolir. Deixo desprender de mim uma espécie de fel. Esse amargo se chama... atraso.
Meu relógio não marca hora e sim segundo, pois sou sempre o segundo a chegar. Já peguei táxi pra correr atrás de ônibus... já cheguei depois da noiva no casamento e eu era padrinho...
No entanto, confesso que ando fazendo algumas coisas para ter uma convivência pacífica com os ponteiros. Houve uma época em que eu andava com o meu relógio vinte minutos adiantado. Mas não funcionou: eu sempre me lembrava de que ele estava vinte minutos na frente. O relógio adiantado foi uma coisa que não adiantou.
Despertador foi uma porção. Eu tinha três deles ao lado da minha cama. O primeiro despertava duas horas antes, o segundo uma hora antes e o terceiro meia hora antes... e eu me levantava meia hora depois. Tive um galo também, o Dedéu. Sozinho e solteirão. Foi só eu arrumar umas duas penosas cacarejantes que o Dedéu criou alma nova e pôs-se a cantar. Mas como viu que seu dono não seguia patavina o horário de seus recitais cocoriqueiros, chutou o balde e passou a cantar quando desse na telha. Até as galinhas estranharam. E esfriaram-se com ele.
Outra artimanha que arrumei foi fazer promessa pra mim mesmo: “Se eu chegar atrasado à reunião, eu dou cinquenta reais pra uma instituição de caridade”... “Se eu chegar atrasado ao cinema, eu dou cem reais para aquela outra instituição”... Tive que parar com isso, claro. Eu estava me transformando no Benfeitor da Pindaíba, gastando mais dinheiro pra pagar minhas promessas do que pra pagar minhas contas.
Essa minha fidelidade ao atraso vem de longe. Um dia, minha mãe me contou que o meu parto foi com fórceps. Devo ter me atrasado pra sair e então me puxaram pra fora. Se eu fosse soldado, a guerra ideal pra mim seria a Guerra dos Cem Anos, pois eu teria uma boa margem pra chegar ainda a tempo.
Fui atrás do meu amigo Marcus Vinicius de Andrade Peixoto pra conversar com ele sobre o meu problema com o atraso. Marcus Vinicius de Andrade Peixoto é meu amigo filósofo, pesquisador dos ecos abstratos das síncopes do Olodum nas incursões existencialistas de Kierkegaard. Está desenvolvendo, no momento, um artigo onde ele defende a influência do rebolado da música axé nas ataxias do pensamento ocidental.
Marcus Vinicius de Andrade Peixoto me recebeu com aquele seu jeito calmo e mais parado do que ponto final. Nem notou que cheguei atrasado.
Depois que lhe falei do meu problema, meu amigo fechou os olhos e começou a pronunciar vagarosamente as suas frases no fluxo da preguiça:
– Não se queixe de você sempre chegar atrasado. Há uma grande vantagem nisso.
– Vantagem? Qual?
– Como você só chega atrasado, você morrerá atrasado. Vai viver ainda uns minutos a mais.
Minhas caras
23 de Agosto de 2023, por José Antônio 0
Era um jantar de réveillon. Ela era minha namorada e eu estava jantando em sua casa. Aquela porção de gente, muita comida, falatório alto, abraços festivos, bebida a rodo, música animada... E todo mundo esperando o Ano Novo, como se o novo ano tivesse alguma coisa a mais do que o Ano Velho.
Curto o réveillon, participo da festa, abraço todo mundo, desejo alegrias pra quem chega perto de mim... mas tudo não passa de mais um dia após o outro. O calendário é uma invenção. E como a gente inventa em cima do calendário! Reinventamos o calendário a cada ano. Tem que ser assim, senão a gente não esquece que ele é apenas uma convenção matemática.
Voltando ao jantar na casa da minha namorada, lá pelas tantas a minha ex-futura-sogra interrompeu a conversa do meu ex-futuro-sogro para dizer que iria fazer uma foto de todo mundo ali. E toca todo mundo a ajeitar cabelo, esticar camisa, estufar o peito, ensaiar sorrisos... Germes remotos de um inocente fotoshop.
– Venha também, afinal você já é da família. – era o meu ex-futuro-cunhado, já me integrando à minha ex-futura-clã.
Como ainda não havia máquina digital nem celular com câmera, o negócio era confiar nos critérios estéticos do retratista:
– Vou bater outra, o Fulano saiu dormindo. Ih, cara! Vou bater de novo, a Beltrana tampou o Sicrano. Lá vai... atenção... tira essa jarra aí da mesa, está atrapalhando... Vocês querem de corpo inteiro ou só da cintura pra cima?
Também fiz o meu fotoshop rústico, criando um espelho em minha imaginação, mas...
– Não, cara! Você está que nem retrato três por quatro. Abre um sorriso.
Abri o sorriso e tenho certeza de que fiquei com cara de idiota.
– Pensando bem, é melhor você não sorrir. Procure uma posição natural. Abrace alguém.
Abracei o avô da namorada e o homem fez que nem pêndulo: foi e voltou numa perna só. Bêbado.
– Quer saber de uma coisa? Eu vou bater várias fotos e aí você faz caras diferentes. Se não for assim, o negócio não desanda.
E a cada flash eu montava e desmontava uma cara diferente. Fiz cara de intelectual, festeiro, Napoleão, atleta, triste, turista, detetive, sargento... Na última eu estava com cara de toureiro.
Nunca vi o resultado. Com o tempo, o namoro terminou. Com o tempo, muitos outros réveillons se passaram. Com o tempo, eu fui me esquecendo daquilo tudo.
Com esse mesmo tempo, eu reencontrei a minha ex-namorada casualmente na rua. Mais amadurecida e acompanhada de uma garotinha: sua filha. Pois é... quanto tempo... é mesmo... e aí?... vou bem... sua filha?... linda, igual à mãe... tem mais filhos ou é só ela?... Até que o assunto caiu no maldito jantar do réveillon.
– O pessoal lá em casa ainda pergunta por você. Inclusive tem umas fotos em que você está. Lembra-se daquele réveillon?
Foi então que a menininha arregalou os olhos e disparou:
– É ele, mãe? Ele é o homem das mil caras? O pior é que nenhuma das mil presta.
A mãe só tinha uma cara... e não sabia onde enfiar. Eu, por minha vez, não tinha mais cara: já tinha queimado todas as minhas caras naquele jantar. O negócio foi dar um sorriso de miss: forçado, montado, ridículo e sonso.
Fui embora. Olhei pra trás e ainda vi a minha ex-futura-esposa dando um safanão no bracinho da minha possível-ex-futura-filha. Ainda bem que não me casei com ela. Com que cara eu iria pedir a sua mão?