Era já para eu ter escrito sobre Dom Mauro, com quem me relacionei muito, e minha grande admiração, cujo falecimento em setembro de 2024 fará um ano. Assuntos mais prementes e tratamentos de saúde aconselharam-me a adiar.
Na minha cabeça, o dito do dramaturgo latino Terêncio, que morreu com 25 anos, voltando da Grécia, no ano 159 antes de Cristo: “Senectus ipsa morbus est” (a velhice em si própria é uma doença). É verdade. Pela velhice, os órgãos vão desgastando. Daí a causa mortis de um idoso relativamente sadio: falência múltipla dos órgãos. Portanto, com a idade avançada, não perca tempo, vai fazendo suas coisas, pois os achaques vão chegando. É o meu caso. Em outubro, agora,chego aos 85 anos!
Terêncio deixou também uma outra frase: “Homo sum et nihil humani a me alienum puto” (Sou ser humano e julgo que nada de humano me pode ser estranho, indiferente). A meu ver, tornou-se o lema do autêntico humanismo e inspirou-me a série sobre os grandes humanistas nacionais para esta coluna: Graciliano Ramos, Sobral Pinto, Tristão de Athaíde, Dom Paulo Evaristo Arns etc. Agora Dom Mauro Morelli.
Escrevendo sobre Dom Mauro, infelizmente falecido ano passado, em Belo Horizonte, o leitor me desculpe, pois preciso falar um pouco de mim, quando Dom Mauro era bispo auxiliar de Dom Paulo Evaristo Arns na arquidiocese de São Paulo, capital, junto com Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom Angélico Sândalo Bernardino, todos nomeados bispos pelo Papa Paulo VI e sagrados por Dom Paulo Evaristo Arns.
Dom Mauro Morelli era bispo auxiliar responsável pela região sul da capital e eu, então pároco da Paróquia de São Benedito na Vila Sônia, coordenava para ele as paróquias da região da avenida Francisco Morato. Eram 7 paróquias, indo até a cidade de Juquitiba, mais ou menos a 70 quilômetros da Vila Sônia, pela BR 116. Usando o termo moderno, fui um dos seus vigários forâneos.
Naquela época, eu era pároco e professor em dois colégios. Quando me veio a crise sacerdotal, pedi a ele um afastamento de minhas funções eclesiásticas para pensar melhor se continuaria na Igreja ou pediria a dispensa definitiva do clero. Para meu bem e bem da Igreja Católica, optei pela saída definitiva.
Ficou inconformado. Ofereceu-me até um mestrado em sociologia em Lovaina, na Bélgica, por conta da arquidiocese. Como não aceitei, por questões de consciência, ajudou-me em tudo. Só perdemos o contato quando foi nomeado pelo Papa João Paulo II, em 1981, como primeiro bispo da diocese de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
A formação de Dom Mauro foi muito profunda. Nascido em Avanhandava, 1935, foi criado em Penápolis, estado de São Paulo. Fez o seminário menor em Piracicaba, o seminário maior de filosofia no Rio Grande do Sul. Em Viamão, estudou teologia, especializando-se nos Estados Unidos, em Baltimore.
Foi uma vida dedicada a uma Igreja Católica profundamente renovada pelo Concílio Vaticano II, já que foi membro da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) no auge de sua atuação.
Uma vida dedicada às liberdades democráticas. Foram anos de luta, mas envoltos de muito medo, para a libertação dos presos e para cessar as torturas e mortes pela ditadura. Disso sou testemunha, tantas vezes participando de vigílias para que tais práticas cessassem. Dom Mauro fez parte dos bispos chamados “vermelhos” pela ditadura, pois ela afirmava que eles defendiam o comunismo. Além de Dom Mauro, Dom Waldyr Calheiros, Dom Adriano Hipólito, Dom Clemente Isnard, Dom Helder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns.
Uma vida dedicada à diminuição da pobreza, de combate à miséria e à fome. Junto com Herbert José de Sousa (o Betinho), fortaleceu a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela vida. Foi um dos fundadores do Movimento pela Ética na Política.
Na eleição em que se elegeria o presidente Lula, foi cogitado para candidatar-se como vice-presidente da República pelo PT. Além de não aceitar, isso lhe rendeu muitas críticas. No entanto, junto com Frei Betto, trabalhou no programa Fome Zero, do governo, até que a politicagem os fez sair.
Em 2005, o Papa aceitou sua renúncia, tornando-se bispo emérito. Passou a residir em São Roque de Minas, na Serra da Canastra, pois desejava fazer 80 anos na nascente do rio São Francisco. Sonhava também com uma viagem a Brasília para defender no Congresso Nacional a melhora do Programa Nacional de Alimentação Escolar.
Assim foi Dom Mauro: grande humanista!
É o que penso. E você?