Colecionador de recortes de jornal, como sempre fui, em minhas mãos o Estado de S. Paulo, 1987. Ano da constituinte. Propaganda da Vasp. Publica Os Estatutos do Homem de Thiago de Mello, com os seguintes dizeres: “Que o texto do poeta seja uma nova realidade para todos a partir deste ano da Constituinte. Os Estados do Homem são em forma de artigos. São 14 artigos.
Como esta minha coluna leva o título de “O verso e controverso”, desta vez trabalho apenas o verso no sentido do verbete número 1 do Novo Aurélio: “Cada unidade rítmica constitutiva de um poema, ou seja, a unidade de rítmica de uma poesia”. Não no sentido de verso do título da coluna, que é o indiscutível, aquilo que não se constitui objeto de controvérsia.
Peço desculpas ao leitor que conhece a obra de Thiago de Mello, mas, tendo em vista os que não a conhecem, tomei a liberdade de citar o poema mais famosos dele: “Os Estatutos do Homem”.
Artigo I: “Fica decretado que agora vale a verdade / que agora vale a vida / e que de mãos dadas / trabalharemos todos pela vida verdadeira”. Artigo II: “Fica decretado que todos os dias da semana / inclusive as terças-feiras mais cinzentas / têm o direito a converter-se em manhãs / de domingo”.
Artigo III: “Fica decretado que a partir deste instante / haverá girassóis em todas as janelas / que os girassóis terão direito / a abrir-se dentro da sombra / e que as janelas devem permanecer o dia inteiro / abertas para o verde onde cresce a esperança”. Parágrafo único: “O homem confiará no homem / como um menino confia em outra menina”.
Artigo IV: “Fica decretado que o homem / não precisa nunca mais / duvidar do homem / que o homem confiará no homem / como a palmeira confia no vento / como o vento confia no ar / como o ar confia no campo azul do céu”. Parágrafo único: “O homem confiará no homem / como um menino confia em outro menino”.
Artigo V: “Fica decretado que os homens / estão livres do jugo da mentira. / Nunca mais será preciso usar / a couraça do silêncio / nem a armadura de palavras, / O homem se sentará à mesa / com seu olhar limpo / porque a verdade passará a ser servida / antes da sobremesa.
Artigo VI: “Fica estabelecida durante dez séculos / a prática sonhada pelo profeta Isaías / e o lobo e o cordeiro pastarão juntos / e a comida de ambos terá o mesmo gosto / de aurora”.
Artigo VII: “Por decreto irrevogável fica estabelecido / o reinado permanente da justiça e da claridão / e a alegria será uma bandeira generosa / para sempre desfraldada na lama do povo”.
Artigo VIII: “fica decretado que a maior dor / sempre foi e será sempre / não poder dar amor a quem se ama / sabendo que é a água / que dá à planta o milagre flor”.
Artigo IX: “Fica permitido que o pão de cada dia / tenha no homem o sinal de seu suor / Mas que sobretudo tenha sempre / o quente sabor de ternura”.
Artigo X: “Fica permitido a qualquer pessoa / a qualquer hora da vida / o uso do traje branco”.
Artigo XI: “Fica decretado por definição / que o homem é um animal que ama / e que por isso é belo / muito mais belo que a estrela da manhã”.
Artigo XII: “Decreta-se nada será obrigado nem / proibido / tudo será permitido / inclusive brincar com os rinocerontes / e caminhar pelas tardes / com uma imensa begônia na lapela”. Parágrafo único: “Só uma coisa fica proibida / amar sem amor”.
Artigo XIII: “Fica decretado que o dinheiro / não poderá nunca mais comprar / o sol das manhãs vindouras. / Expulso do grande baú do medo / o dinheiro se transformará em uma espada fraternal / para defender o direito de cantar / e a festa do dia que chegou”.
Artigo Final: “Fica proibido o uso da palavra liberdade / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano enganoso das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio / ou como a semente do trigo / e a sua morada será sempre / o coração do homem”.
Um resumo da biografia de Thiago de Mello: Amadeu Thiago de Mello nasceu em Barreirinha, no Amazonas, em 1926. Aí fez seus estudos iniciais. Ingressou na graduação em medicina, no Rio de Janeiro, mas abandonou na metade do curso. Entrou, então, na carreira diplomática, tendo sido adido cultural na Bolívia e no Chile. Sua carreira foi interrompida pela ditadura militar brasileira de 1964. Foi preso e depois se exilou no Chile, onde se tornou amigo do grande poeta chileno Pablo Neruda. Morou na Argentina, Portugal, França e Alemanha. Grande poeta, prosador, tradutor, artista e jornalista multipremiado. Faleceu a 14 de janeiro de 2022 em Manaus. A 34ª Bienal de S. Paulo fez uma homenagem a ele.
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